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Chimarrão

Por Nelson Menda

Apesar de nascido no Rio Grande do Sul, nunca gostei de chimarrão. Tanto pelo sabor amargo da infusão quanto pelo fato de precisar ser sorvido com água bem quente, quase pelando. Não curtir chimarrão era considerada uma verdadeira heresia entre meus conterrâneos. Habitualmente, quando se é convidado a uma residência de gaúcho a primeira gentileza ao recém chegado é oferecer uma cuia com chimarrão. É feio não aceitar. Dependendo da região do Rio Grande do Sul, pode ser uma cuia com um volume razoável, digamos assim, correspondendo a dois copos de água. Já na região colonial, ao norte do estado, as cuias são bem maiores.

Uma das perguntas que eu, como profissional da medicina, deveria indagar ao interlocutor, referia-se à quantidade de copos de água que o paciente costumava consumir. Depois de alguns anos residindo no estado, me acostumei a receber uma resposta negativa, pois o vivente ingeria tanto chimarrão durante o dia que não sentia necessidade de tomar água.

Um dos primeiros objetos que ganhei, em criança, era um acessório indispensável em qualquer casa do extremo sul do país: uma bomba! Calma, leitores, não estou me referindo a um artefato bélico, mas ao instrumento indispensável para sorver, com a água bem quente, o precioso líquido. Mas não queiram pensar que a preparação para o ritual sagrado de tomar, pela manhã, o chamado “mate amargo”, era algo simples. Nada disso. Era preciso adquirir, em qualquer armazém, um bom estoque de erva-mate. Que costumava ser fornecido em embalagens de um quilo semelhantes às do café em pó.

O primeiro chimarrão costumava ser sorvido pela manhã, em jejum. A preparação para o consumo do produto deveria obedecer a um autêntico ritual. A erva deveria ser colocada na lateral da cuia, deixando o espaço restante para a água quente. O primeiro sorvo deveria ser desprezado, ou seja, cuspido no chão. Além da erva propriamente dita, os adeptos desse tradicional costume costumavam dispor de uma cuia, usualmente elaborada a partir de um porongo, vegetal nativo do sul do país. O arsenal completo para a prática desse tradicional hábito deveria incluir, além da erva-mate e da cuia, uma bomba de prata ou alpaca e, obviamente, uma chaleira, para aquecer e manter a água em elevada temperatura. Isso obrigava as casas do estado a manter um fogão aceso a maior parte do dia.

A erva, de diferentes marcas comerciais, era vendida em praticamente todos os armazéns e bolichos do Rio Grande do Sul. Os homens que residiam naquele estado, além de dispor de botas e bombacha, deveriam contar com o arsenal completo para consumo do chamado mate amargo.

A tradição obrigava o oferecimento do chimarrão aos visitantes. Recusar o chimarrão era considerado uma verdadeira desfeita ao dono da casa. Que deveria ser sorvido ainda quente, até a bomba “roncar”, ou seja, emitir o som característico de que a água tinha terminado, o que significava para quem, como eu, não curtia o hábito, prolongar aquela verdadeira tortura por tempo indeterminado. Servir um chimarrão a uma visita era considerado uma forma de boa educação e a cuia deveria circular entre todos.

Durante os seis longos anos em que residi naquele estado precisei fingir que gostava, para não ofender os anfitriões. Mas nem todos os forasteiros detestavam o chimarrão. Minha avó paterna, turca de nascimento, que se comunicava conosco em ladino, assim que chegou ao Rio Grande do Sul e experimentou o chimarrão, ficou encantada com a novidade. A ponto de dispor de todo o arsenal para o consumo do mesmo. Quando viajava, com alguém da família, para um dos balneários litorâneos do Sul do Brasil, fazia questão de levar com ela toda a parafernália necessária ao consumo daquele novo hábito. O pitoresco é que, apesar da nossa família ser bastante numerosa, somente ela aderiu, em tempo integral, ao consumo do chimarrão.

Ao lado dos aspectos relacionados ao costume de sorver o cultuado mate amargo, é importante relatar algumas características bastante nocivas à saúde atribuídas à prática. Não à infusão propriamente dita, mas ao fato desse tradicional hábito exigir a ingestão de água quente. Tão quente que, com a repetição diuturna do consumo, as elevadas temperaturas da água acabarem por provocar lesões no esôfago que podiam descambar para um temido câncer dessa região. A tal ponto que essa enfermidade chegou a ser considerada endêmica entre a população do Sul do Brasil e países limítrofes, especialmente o Uruguai.

Assistimos, recentemente, a triste notícia a respeito do falecimento de um ex-presidente daquele simpático país vizinho. A imprensa noticiou a causa-mortis como sendo câncer do esôfago. Não entrou em detalhes, mas seria conveniente esclarecer se Pepe Mujica era, ou teria sido, mais um adepto do mate amargo. Que descanse, merecidamente, em paz.

Foto: Veronica L.L. Vargas (Instituto Estadual de Educação Elisa Ferrari Valls)

2 comentários sobre “Chimarrão

  • Seu comentário sobre o chimarrão, bebida tradicional dos gaúchos, está repleto de preconceitos de quem não gosta da bebida. Primeiro, a água não pode estar muito quente porque o calor em excesso “funde” a infusão e entope a bomba. Tem que ser morna, em torno de 70 graus ou menos. Como é que a gente sabe que a água está a 70 graus? Simples, é quando a chaleira começa a “chiar”. Aí a gente tem que tirá-la do fogo para não esquentar demais e colocar a água numa garrafa térmica. Duas coisas são consideradas falta de educação: a primeira érecusar o chimarrão e a segunda é limpar a bomba depois de recebe-la de outro gaúcho. Segundo Veríssimo, a solução é apelar para a vingança: entregá-la mais babada ainda para o próximo. Gosto de chimarrão e atualmente não estou tomando diáriamente por pura preguiça de esquentar a água no ponto certo. Quando trabalhava na Embratel, minha secretária trazia da central de café a água pronta para o chimarrão. Aí era só prepará-lo, o que não custa nada. Quando viajo a Porto Alegre, aproveito para tomar o chimarrão que meus parentes preparam. Você devia ouvir com mais atenção os conselhos de sua vó!

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  • Oi Feliciano. Apesar de não gostar de chimarrão, faltou informar aos leitores que adoro o chá de mate, preparado com a mesma erva, a hevea braziliensis. Qual a diferença? Provavelmente o paladar mais adocicado e a temperatura menos agrassiva.

    Oi Feliciano. Faltou dizer que, apesar de não curtir o chimarrão, sou fã do mate gelado. A erva é a mesma, mas a diferença é o sabor levemente adocicado do chá de mate, ao passo que o chimarrão, como o próprio nome assegura, é denominado de amargo. De amarga, já não basta a própria vida?

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