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Citroën 1947

Por Nelson Menda

Nosso primeiro veículo, lá pelos anos cinquenta do século passado, que eu me recorde, era um Adler, um carrinho alemão de quatro portas de aparência frágil. Esse Adler tinha um defeito de concepção gravíssimo, pois as portas dianteiras se abriam para frente.  Havia o risco, portanto, caso o carona se apoiasse na maçaneta dessa porta, em um solavanco maior, ela se abrir e projetar o passageiro para fora. O motorista podia contar com o próprio volante para se apoiar, mas o carona não tinha onde se segurar e, além do mais, os cintos de segurança ainda não tinham sido criados e, muito menos, tornados obrigatórios naquela época.

Meu tio Eliezer, irmão do meu pai, certo dia, pediu o carro emprestado para dar uma volta e eu, com meus sete ou oito anos de idade, quis ir junto.  Seria um passeio rápido, pois acredito que meu tio recém tinha tirado a carteira de motorista. Naquele tempo, pelo menos em Porto Alegre, não existiam autoescolas e quem quisesse aprender a dirigir deveria pedir um veículo emprestado a algum parente ou amigo. Não tenho bem certeza, mas provavelmente quem deve ter ensinado meu tio a dirigir deve ter sido meu pai, pois além de ser seu irmão mais velho era o único da família que possuía carro.

Não lembro se o Adler estava correndo, mas na primeira curva fechada que fizemos a porta dianteira, em cuja maçaneta eu estava apoiado, se abriu e fui, literalmente, voando em direção à calçada. A aterrissagem não foi nada suave e só lembro de ter chegado em casa, poucos minutos depois do tal passeio, todo lanhado e sangrando. Acho até que o susto foi tão grande que não cheguei a chorar, mas o pobre do Tio Eliezer perdeu, na hora, o direito de voltar a dirigir o nosso carro.

Não sei se o Citroën preto 1947 veio logo a seguir do Adler, mas depois que meu pai começou a dirigir o novo veículo não quis mais saber de outra marca de carro. O ponto alto daquele modelo da Citroën era a estabilidade, pois o carro podia correr e fazer a curva mais fechada possível e ele não capotava de jeito nenhum.  Tanto que meu pai não teve um, mas vários Citroëns nos anos seguintes e quando minha mãe tomou coragem e resolveu aprender a dirigir, não é difícil adivinhar qual a marca, modelo e cor do segundo carro da família.

Quem vem acompanhando esta série de blogs deve saber que tínhamos um cachorro, o Joly, que era o fiel escudeiro do meu pai tanto no escritório de contabilidade quanto nas visitas habituais aos clientes, em seus respectivos estabelecimentos industriais ou comerciais. O Joly não perdia essas visitas de jeito nenhum, pois sempre foi fissurado tanto na companhia do meu pai quanto nos passeios de carro.

O Brasil ainda não fabricava automóveis, que precisavam ser importados e custavam caro. Verdade seja dita, não existiam muitos Citroën pretos na Porto Alegre dos anos 50 do século passado. Até o bendito dia, lembro como se fosse hoje, que um outro cidadão, que também possuía um carro do mesmo modelo e cor decidiu, inadvertidamente, estacioná-lo na frente do 969 da Rua Demétrio Ribeiro. O que haveria de especial nesse endereço? Era onde ficava tanto a nossa casa quanto o escritório de contabilidade do meu pai.

Foi só o desavisado motorista abrir a porta e sair do seu carro para que o Joly, rápido como um raio, entrasse no veículo e começasse a ladrar para o infeliz, que não estava entendendo nada. O bicho, provavelmente, imaginou que alguém estaria tentando se apossar do carro do seu dono e, como um fiel cão de guarda, sentiu-se no dever de impedir a consumação de um possível roubo. Essa história, lembro até hoje, rendeu um tempão enorme. Eu e uma das minhas irmãs tentávamos explicar para o infeliz proprietário do Citroën que nosso pai tinha um carro igualzinho ao dele e que o cachorro imaginava ser o veículo em que ele costumava não só passear como também tomar conta nas visitas profissionais à clientela do escritório. Só que não havia jeito do bicho entender e é importante frisar que o Joly, apesar de ser um cão de porte médio, era bastante valente e não fugia de nenhuma briga. Começou a juntar gente na calçada para tentar entender o que estaria ocorrendo, pois a paciência do dono do veículo estava se esgotando e ele precisava do carro para trabalhar. Lembro que eu e minha irmã gritávamos sem parar, do lado de fora: “Não é o carro do pai, Joly”.

Como frisei em texto anterior, de bobo o Joly não tinha nada e ele acabou entendendo o tamanho da encrenca em que havia, inadvertidamente, se envolvido. Demorou um certo tempo, mas o bicho acabou saindo do carro, orelhas baixas, como que se dando conta do vexame que tinha passado e nos feito suportar. O homem, assim que conseguiu entrar no carro, fechou bem a porta e a janela, ligou o motor e se mandou, deixando-nos com a certeza de que, no  969 da Demétrio Ribeiro ele jamais voltaria a estacionar um Citroën preto ou qualquer outro carro que viesse a dirigir na vida.

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