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Confraria Brasileira

Por Nelson Menda

Um dos grandes desafios para quem abandona o torrão natal é refazer seu círculo de amizades. A sociedade pode ser dividida, grosso modo, entre aqueles que são ligados de forma umbilical à terra onde nasceram – e dela não conseguem se afastar – e os que estão sempre pulando de galho em galho. Faço parte, ainda que contra a vontade, do segundo grupo. Não por opção própria, mas pela força das circunstâncias.

Nasci em Porto Alegre, cidade perfeita em tamanho e qualidade populacional na década de 40 do século passado, quando possuía quatrocentos mil habitantes. Deveria ter sido encantada e ficado por aí, mas a exemplo do que se passou no restante do país, foi crescendo, crescendo ou, melhor dizendo, inchando e perdendo, pouco a pouco, seu encanto provinciano. Porto Alegre chegou a possuir o maior índice de alfabetizados de todo o país, bem próximo dos 100%. De dispor de sistemas públicos de saúde, educação e transporte de matar de inveja os países mais desenvolvidos. Apesar de relativamente distante do litoral, contava com um conjunto de praias de água doce e tranquilas que possibilitavam tanto o lazer de crianças e adultos quanto a prática de atividades náuticas de toda ordem.

A essas alturas, quem estiver lendo este texto, começa a duvidar a respeito da existência desse verdadeiro paraíso terrestre, mas a Leal e Valerosa, dentre suas muitas qualidades, possuía um terrível defeito, especialmente para os asmáticos: o clima! Os verões em Porto Alegre eram terrivelmente quentes e abafados, ao passo que os invernos inteiramente gélidos. Dizia-se, com propriedade, a respeito do clima, que eram “três meses de inverno e nove de inferno”. Quando começava a esfriar vinha a chiadeira no peito, acompanhada pela temporada de cataplasmas, xaropes para tosse, nebulizações para desobstruir as vias aéreas e uma infinidade de medicamentos caseiros para enfrentar as recorrentes faringites e amigdalites.

A primeira vez em que viajei para o Rio de Janeiro, durante a adolescência, ao vislumbrar aquela paisagem fantástica e constatar que era possível ir à praia o ano inteiro, tomei a decisão de, assim que possível, fazer as malas e me mudar para lá. Concluída a faculdade, coloquei meus livros, discos e demais objetos pessoais em um fusquinha e me pirulitei para a Cidade Maravilhosa. Nos primeiros anos de Rio comi o pão que o diabo amassou, pois além do custo de vida ser muito mais elevado do que no sul do país, a remuneração pelo trabalho médico era bastante baixa. Mas era o que eu queria e estava disposto a pagar o preço. Não me arrependo, apesar de ter sofrido com o afastamento dos meus melhores amigos e de grande parte da família.

Essa ruptura com a terra em que nasci e que, seguindo as recomendações de Olavo Bilac, deveria amar com fé e orgulho, na realidade, representou a primeira de uma série de novas diásporas, até culminar com a chegada a Portland, Oregon, na Costa do Pacífico onde, por ironia do destino, faz tanto ou mais frio do que no meu local de nascimento. A diferença é que, aqui nos States, posso dispor de calefação central para suportar os gelados e chuvosos meses de inverno, assim como “ar refrigerado para os dias de calor”, na letra daquela saudosa marchinha de Carnaval.

É forçoso reconhecer, todavia, que entre o paraíso carioca do passado e a vida mansa que estou levando aqui no Oregon devo mencionar o tempo fantástico que passei em Miami Beach, onde residi por mais de uma década e conheci pessoas incríveis. É exatamente a respeito desse grupo de amigos e amigas da autoproclamada Confraria Brasileira de Miami Beach que tenciono abordar nesta crônica.

A convite do jornalista e amigo Osias Wurman, que editava a Newsletter Notícias da Rua Judaica, por sinal a de maior alcance e prestígio da mídia comunitária brasileira, comecei a redigir a coluna semanal Conexão Rio-Miami. Nela, procurava abordar assuntos relacionados ao que acontecia naquela encantadora cidade da Flórida e que poderiam, em tese, interessar aos leitores brasileiros. Sem querer, acertei na mosca, pois acabei conhecendo uma família brasileira que residia em Aventura, cujos componentes eram leitores assíduos da Rua Judaica.

Refiro-me ao casal Ayrton e Nisete Queiroga, naturais de Campina Grande, Paraíba, e que já residiam há alguns anos nos Estados Unidos. Ayrton também era médico, tendo realizado residência em Patologia em um dos grandes centros dessa especialidade aqui nos States. Concluída a especialização, foi convidado a exercer a atividade no país, onde poderia ganhar muitíssimo bem e propiciar ao casal de filhos Hugo e Mônica uma excelente qualidade de vida. Mas o canto de sereia não o seduziu, pois seu pai, também médico e com uma vasta clientela na dinâmica Campina Grande, estava precisando de um especialista para inaugurar um laboratório de análises clínicas e de patologia, até então inexistentes na cidade.

A Paraíba em geral e Campina Grande em particular tinham sediado uma importante comunidade Cristã Nova no Nordeste do Brasil. Daí o fato dos Queirogas terem se constituído em um clã de competentes profissionais da saúde, atividade classificada pelo também médico e escritor Moacyr Scliar Z”l, como portátil. Sujeitos às perseguições de toda ordem, muitos judeus de Portugal e do Brasil Colônia vislumbraram na medicina uma atividade que poderia ser exercida em qualquer localidade onde existissem pessoas necessitando de cuidados médicos.

Ayrton Queiroga, homem inteligente e culto, além de conhecer a origem criptojudaica de sua própria família, daí ser leitor assíduo das Notícias da Rua Judaica, onde acabamos nos encontrando – ou reencontrando – tomou a iniciativa de enviar um e-mail para aquele até então desconhecido Nelson Menda. Ayrton e sua esposa, Nisete, residiam em Aventura e a cidade tinha sido mencionada em um dos meus recentes artigos por ter sido inteiramente planejada por um empreendedor judeu que vislumbrou na Flórida o lugar ideal para se viver. Porque, até então, Miami era uma espécie de asilo para velhinhos e velhinhas do norte do país descansar enquanto aguardavam a visita indesejada de uma antipática senhora vestida de roupas escuras da cabeça aos pés.

Esse empreendedor comprou e drenou um imenso pântano, criando Aventura, uma cidade modelo que o casal Ayrton e Nisete tinha escolhido para residir depois da merecida aposentadoria no movimentado Laboratório de Patologia Clínica de Campina Grande, onde os dois trabalhavam, apesar de descendentes de cristãos novos, como mouros. Após o falecimento do pai, Ayrton não via a hora de retornar aos Estados Unidos, com esposa e filhos, a fim de curtir sua merecida aposentadoria.

E foi na aprazível Aventura, no tradicional restaurante Cheese Cake Factory, que agendamos, pela Internet, nosso primeiro encontro pessoal. Todavia, surgiu um inesperado empecilho. Como reconhecê-los no burburinho do Aventura Mall, frequentado por milhares de visitantes? Minha imagem era veiculada pela Rua Judaica, mas eu não fazia a menor ideia de como seriam as fisionomias do Ayrton e da Nisete. Fui para a entrada do movimentado restaurante e passei perguntar, em português, para as pessoas que passavam se, por acaso, seriam eles. Até o momento em que um casal se aproximou, nos identificamos e nos dirigimos de imediato a uma das mesas, onde permanecemos algumas horas degustando uma deliciosa refeição e trocando ideias.

A partir desse encontro nasceu uma sólida amizade, como se já nos conhecêssemos há décadas. Marcamos um próximo encontro, ao redor da mesa de um dos muitos restaurantes de comida cubana, que enchem os olhos e os estômagos dos brasileiros saudosos do arroz com feijão da terra natal. A cada encontro foram sendo agregados mais e mais brasileiros ao grupo, desejosos de falar e escutar português, saber das novidades e, principalmente, escutar as dicas de marinheiros velhos de guerra, como os Queirogas. Batizamos o grupo de Confraria Brasileira e fizemos questão de nos encontrar com regularidade, geralmente à mesa, pelos próximos anos.

Como tudo o que é bom dura pouco, o destino acabou desfazendo o grupo, levando a Nisete e o Ayrton, nessa ordem, mas conservando na memória a lembrança daqueles bons tempos pré-pandemia. Além das saudades, o casal nos legou a amizade de seus filhos Hugo e Mônica, respectivamente em Madrid e na Carolina do Norte. Hugo é um profissional bem sucedido na área de investimentos e, logo no comecinho da pandemia, previu com exatidão o que iria acontecer com o mercado imobiliário, tendo acertado na mosca com suas fundamentadas análises. Mônica, em sociedade com o marido, administra uma empresa de produtos e serviços para informática em uma simpática cidade do interior da Carolina do Norte, onde o Ayrton passou seus últimos e tranquilos dias.

A exemplo da vitoriosa Revolução de 30, em que o Rio Grande do Sul e a Paraíba enfrentaram, sozinhos, o restante do país, derrotando a dupla café com leite, São Paulo-Minas, que se eternizava no poder em eleições prá lá de suspeitas, serviu de modelo para uma amizade entre nossas famílias que, oxalá, “seja eterna enquanto dure”, como preconizava o genial Vinicius de Morais.

Foto: Home Max Realty. Coronado Condominiums, Aventura

2 thoughts on “Confraria Brasileira

  • Elizabeth Pipersberg

    Meus pêsames pelo Airton!

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    • Hugo Queiroga

      Muito obrigado Nelson Menda e Elizabeth Pipersberg por ter o meu pai, Ayrton Queiroga em seus pensamentos. Ele e a minha mãe, Nisete, tinham muito carinho para com a família Menda! E eu e minha irmã Mônica podemos dizer o mesmo, com a vantagem de ainda estarmos aqui para futuros encontros continuando o espírito da “Confraria Brasileira” que vocês começaram anos atrás. Obrigado pela sua amizade e amabilidade neste tempo difícil. O nosso pai nos deixou à poucos dias, mas a sua memória seguramente guarda a “Confraria Brasileira” em um lugar especial! Um forte abraço, Hugo Queiroga

      Resposta

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