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Racismo, antissemitismo. Entendendo o fenômeno (parte 2)

Por Marcos L Susskind

Sartre escreveu um pequeno trabalho de importância transcendental: “A Questão Judaica”, cujo título em inglês é “Anti Semite and Jew”. Ele exemplifica o antissemitismo após interrogar vários antissemitas, e suas “razões” que são, invariavelmente, baseadas em atitudes preconcebidas que dispensam a “prova” da experiência. Algumas entrevistas: um ator que atribui seu insucesso aos judeus que sempre lhe deram papéis menores nas peças em que atuou; um pintor que acha que a atitude crítica dos judeus instiga os empregados domésticos à desobediência; uma moça que sente ódio dos judeus porque um peleteiro judeu estragou-lhe uma pele (e Sartre pergunta porque ela não passou a odiar os peleteiros, sem receber resposta) e o caso mais radical de um rapaz que ficou em 26° lugar em um concurso para entrar em uma Universidade, em que entraram apenas 12 candidatos, entre eles um judeu. O rapaz acusa o judeu de ter-lhe roubado a vaga. Sartre lhe mostra que se o judeu não prestasse a prova, ainda assim haveria 24 em sua frente e, portanto ele não seria aprovado. Depois Sartre lhe mostra que os demais 25 que ficaram em sua frente não eram Judeus. O rapaz não se convence, segue com ódio de todos os judeus.

Sartre atribui o antissemitismo ao sentimento de pertencimento a um tipo de elite. Não é apenas o prazer de odiar; acarreta também prazeres positivos: tratando o judeu como ser inferior e pernicioso, eu também afirmo que pertenço a uma elite. É uma aristocracia de sangue. Não preciso fazer nada para merecer minha superioridade, e não há como perdê-la. É dada para sempre – não sendo judeu, sou superior!

Afirma Sartre: se o judeu não existisse, o antissemita o inventaria e acrescenta não é o ser judeu que provoca o antissemitismo; ao invés disso, é o antissemita que cria o judeu . Há pessoas que são atraídas pela constância das pedras. Querem ser maciças e impenetráveis, não querem mudar, pois aonde as mudanças as levariam? Trata-se de um medo primordial de si mesmas e um medo da verdade.

A história do antissemitismo passou por mutações através dos tempos.

1ª etapa: Antissemitismo sociocultural – Babilônia, Gregos Selêucidas

Judeus passaram por guerras, perseguições e humilhações ao longo da história, mas a escravidão no Egito não foi uma atitude antissemita. A primeira manifestação antissemita registrada se dá na Babilônia, que conquistou e destruiu Jerusalém e o Templo Judaico em 576 AEC. Judeus foram levados como cativos por Nabucodonosor. Pois Assuero, um dos monarcas que sucedeu Nabucodonosor, emitiu um decreto para exterminar todos os judeus, inspirado por seu ministro plenipotenciário, Haman em 475 AEC. A alegação: os judeus insistiam em preservar sua cultura e não se misturavam à cultura local. Isto há 2600 anos. No entanto, a verdade histórica registra que o ódio de Haman aos judeus foi causado pelo fato de Mordechai, um judeu, não ter se curvado à sua passagem – a primeira atribuição da “culpa coletiva”. Sentiu-se ofendido por um judeu, estendeu a “culpa” a TODOS.

No Século 2 AEC, os gregos tentaram matar judeus que não aceitavam seus costumes sociais de laser: teatro, sauna, lutas e esportes. Manter a identidade diferente causava ódio. Para forçar a adoção de seus costumes, tentam proibir a religião judaica, vista como empecilho à integração nos costumes gregos. A tentativa de colocar a estátua de Zeus no Templo leva a uma revolta, finalmente vencida pelos macabeus por volta de 160 AEC.

2ª etapa: Antissemitismo religioso – Paganismo, Cristianismo, Cruzadas, Islã

No Século 1 AEC aparece a primeira manifestação de antissemitismo religioso. Roma, a toda poderosa Roma, era a grande potência e sua religião pagã tinha diversos deuses tais como Júpiter, Marte, Quirino, Mercúrio, Ceres, Apolo, Minerva etc. Os judeus, por seu lado, acreditavam em um só D-us, sem imagem ou representação. Os escritos de Tácito (110 CE) são bastante elucidativos, ao descrever a entrada do primeiro Romano no Templo de Jerusalém, em 63AEC:

“O primeiro romano a conseguir entrar no Templo, uma vez conquistada Jerusalém, foi Gnaeus Pompeu: graças a ele sabe-se que lá não havia representação de divindades, porém o local estava vazio e a Sala Sagrada nada continha”. (Tacitus, Hist. V.9.1). A ausência de imagens choca o Romano!

No Século 1 AEC o orador Cícero foi contratado para defender Flacos, governador da Ásia, acusado de corrupção. Flacos teria se apoderado do ouro que os judeus tinham direito de mandar a Jerusalém uma vez por ano (½ shekel por pessoa) e seria julgado por corrupção. Cícero acusa os Judeus de perseguirem Flacos e na defesa de Flacos acusa os judeus de sabotadores das divindades romanas, tanto assim que Jerusalém caiu em mãos gregas porque os deuses odeiam os judeus. Ele diz que judeus nasceram para serem escravizados, por desdenharem os deuses romanos.

Menos de duzentos anos depois, Tito conquista Jerusalém e mata entre 700.000 e 1.100.000 judeus, vendendo 89.000 deles como escravos. Tácito, escritor contemporâneo a Tito, criou os quatro pilares que formam as crenças antissemitas. Ele afirmou que os judeus eram ricos, pervertidos, “subjugadores” e sacrílegos por rejeitarem os deuses romanos. A maneira como Tácito descreveu os judeus causou a criação de uma “mitologia”. Essa mitologia anti-judaica considerava os judeus como pessoas protetoras apenas de suas famílias, alheias à religião comum e com falta de patriotismo (todas estas “pietas” da cultura romana) e que os judeus ambicionavam destruir todos os que não eram judeus. Titus Flavius Sabinius, sobrinho do Imperador Vespasiano e primo de Tito é Cônsul de Roma. No ano 95 EC ele se converte ao judaísmo e é circuncidado. Pouco depois, é condenado à morte por desafiar os deuses romanos. Interessante: 350 anos mais tarde, a Igreja o considera um mártir cristão (sic).

O antissemitismo religioso segue por mais de 2000 anos, até nossos dias. Os Romanos destruíram o 2º Templo de Jerusalém e Adriano construiu em seu lugar o Templo a Júpiter de Aelia Capitolina, um templo pagão para apagar o costume de adoração a um D-us único, invisível. Ele também tenta eliminar a relação espiritual dos judeus com Israel e Judá, mudando o nome da região para Palestina. Com isto irrompe a revolta de Bar Cochba que causa 580.000 Mortos (Cassius Dio).

A expansão do antissemitismo para além do Oriente Médio ocorre com os cristãos bizantinos. Até o período bizantino, os cristãos eram uma das correntes dentro do judaísmo. Jesus nasceu e viveu sempre como judeu. Na ânsia de converter os judeus, o Império Bizantino “isola” Jesus e os apóstolos e lança ódio aos judeus através de acusações como sangue infantil na Matzá e o sangue Cristão bebido as sextas à noite.

Antissemitismo cresce: forçam os judeus a exercer o que chamavam “profissões indignas” – forçados à emprestar a juros, coletar impostos ou vender peixes – profissões vistas como asquerosas pela população. Endividados com os únicos que podiam cobrar juros, exacerbou-se o ódio a judeus. Os líderes da hierarquia cristã europeia (católica) desenvolveram ou solidificaram como ideias doutrinárias que: todos os judeus eram responsáveis pela crucificação de Cristo; a destruição do templo pelos romanos e a dispersão do povo judeu eram punições por transgressões passadas e pelo contínuo fracasso em abandonar a fé e aceitar o cristianismo.

Até as Cruzadas, judeus eram os únicos não cristãos em toda a Europa. Com as Cruzadas reemerge fortemente o antissemitismo. Os judeus, que até 1100 não eram discriminados nas artes passam a ser mostrados sempre com um chapéu ridículo. A morte e esquartejamento de uma criança cristã, William de Norwitch, em 1144, é atribuída a judeus (o que não era verdade) e iniciam-se as acusações de sangue que vão permanecer até o Século 20 (Noélia, minha empregada durante sete anos, acreditava que bebíamos sangue de cristãos. Perguntada se alguma vez ela viu, respondeu que não, mas que o padre disse e, portanto, é verdade. Isto em 2007!). O ódio entra até na construção de igrejas – Notre-Dame de Paris (1240) apresenta as humilhantes estátuas Eclesia e Synanoga em sua porta.

Cega, sentada, espada quebrada e com a Torá versus Igreja coroada, forte e ereta. Em 1267 aparece nas artes, além do chapéu pontiagudo, o judeu de nariz adunco. Interessante que Jesus, judeu, nunca usa o chapéu e seu nariz nunca é adunco. Em 1305 a estátua Judensau (foto) vai começar a adornar igrejas. São judeus mamando em uma porca e rabinos se alimentando de seus excrementos – inferindo que judeus são sujos, porcos crescem com leite de porcos!

Algumas resoluções e ocorrências antissemitas:

306 – Sínodo de Elvira – proibição de casamento de cristãos com judeus, proibido comer junto, confraternizar.

380 – São Gregório de Nysa denomina os judeus “assassinos do Senhor, assassinos dos profetas, rebeldes e odiadores de D-us, companheiros do diabo, uma raça de víboras.”

624 – Maomé toma assento de honra para presenciar a decapitação de 600 judeus em Medina, num único dia.

1240 – Disputa de Paris. O Papa Gregório IX promove o julgamento do Talmud sob acusação de conter blasfêmia contra Jesus e Maria, incitado por um judeu convertido ao catolicismo.

1242 – Papa Inocêncio IV estabeleceu uma série de eventos que culminaram na queima de um grande número de textos sagrados judaicos, em 17 de junho de 1242. “Uma estimativa é que os 24 vagões incluíam até 10.000 volumes de manuscritos hebraicos, um número surpreendente quando se considera que a impressora ainda não existia, de modo que todas as cópias de uma obra precisavam ser escritas à mão”.

1260 – Judeus são proibidos de subir além do 7º degrau da Caverna dos Patriarcas (Mearat Hamachpelá) em Hebron. Este édito vigorou por 700 anos. Só em 1969 esta lei segregacionista foi mudada após o General Avraham Zeevi considerar humilhante esta determinação secular.

1348/1351 – Os judeus europeus são responsabilizados pela Peste Negra sob alegação de envenenarem os poços. Massacres por toda a Espanha, França, Alemanha e Áustria. Mais de 200 comunidades judaicas destruídas pela violência. Muitas comunidades foram expulsas e se estabeleceram na Polônia, onde o Rei os aceitou e lhes deu bastante liberdade.

Foto: Tastenlöwe (Representação de uma “Judensau” em uma coluna na Catedral de Brandenburgo)

2 thoughts on “Racismo, antissemitismo. Entendendo o fenômeno (parte 2)

  • Paulina Cymrot

    Marcos, o texto é didático, histórico, ilustrativo. Faço uma ressalva:
    Uma pessoa não escolhe quem ela é: ela não “decide”se quer ou não quer mudar, não se trata de querer, mas de poder emocionalmente, de ter desenvolvimento emocional para isto. De compreender que judeu, negro, homossexual são pessoas e não seres inferiores. Que não há seres inferiores e/ ou superiores, e sim, cada indivíduo é único, há uma raça que é humana, diferentes crenças religiosas que devem ser respeitadas.
    Preconceito é ódio, ignorância, limitação intelectual, crueldade.

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