A sucá esquecida
Por Mary Kirschbaum
Era outubro de 2023. Lembro-me muito bem, tínhamos acabado de passar pelos dias temíveis, já realizado o jejum que cura nossas penitências com D’us. Recém jantamos na nossa sucá e nos preparávamos para dançar com a Torá.
Época de muitos feriados em Israel. As crianças estão pelas ruas, seus gritinhos são ouvidos alegremente, nesses dias de descanso e chaguim gostosos que passam com seus pais.
Olhava pela minha janela da cozinha e via uma sucá, não muito grande, uma tendinha branca, no meio de um gramado enorme que é o pátio de um prédio vizinho atrás do meu. Tenho uma janela pequena que sai da minha cozinha, e onde o sol bate pela manhã na minha casa, um apartamentinho alugado aqui em Yad Eliahu, leste de Tel Aviv.
Por esta janela começo sempre a sonhar meu dia, com o café coado brasileiro que ainda preservo nos hábitos de uma olá chadashá. E ela estava lá, esta sucazinha montada pelo prédio de trás do meu, como é o costume que os israelenses têm de montar sucot por toda Israel, para cair nela depois dos dias temíveis e jantar e fazer suas refeições ou até mesmo dormir com as famílias, comemorando os dias gostosos de sucot e que esperam alegremente pela chegada de Simchat Torá.
Era 7 de outubro de 2023. 6:29 da manhã. Toca uma sirene, estrondosamente em nossos ouvidos, num dia de véspera de feriado de Simchat Torá. Todos acordam assustados e vão para seus abrigos. Desta vez é diferente, dizem as notícias. Ninguém está entendendo muito o que aconteceu. As pessoas vão para a televisão. A sirene havia tocado de novo. Ninguém podia mais dormir. As notícias ainda não muito claras, são alarmantes. Uma amiga me liga e diz vai ter guerra, tá tendo guerra. Meu D’us! O que está acontecendo?
Aí vamos ficando sabendo. De verdade, não me lembro a ordem dos acontecimentos. Os terroristas de Gaza entraram numa festa, raptaram pessoas, entraram num Kibutz, mataram e incendiaram e sequestraram pessoas. São mulheres, homens, crianças, bebês… Não preciso repetir aqui o que o mundo já sabe.
Os dias se passaram e tudo foi ficando cada vez pior. Não acreditávamos no que nossos olhos viam nos noticiários, não botávamos fé no que nossos ouvidos ouviam, era tudo muito absurdo, jamais visto. Tínhamos perdido amigos no Nova festival. Todos os brasileiros conheciam gente que havia morrido lá. Eram amigos, familiares. Todos os Israelenses estavam chorando alguém, velando alguém, não sabendo quem estava sequestrado nas mãos do grupo sanguinolento Hamas, quem estava morto, quem tinha sido estuprado, queimado vivo? Será possível?
Lembro-me de estar ficando apática, depressiva, incrédula. Compromissos adiados, pessoas atordoadas e ficando traumatizadas.
O outono chegou, o verão acabou e aquela sucazinha, ainda estava lá. O vento batia no seu tecido branco decorado em épocas de alegria, comemorações, esperança e vida.
Pois já não havia vida. E aquela sucá ficou lá pelo menos mais uns dias esquecida. Ela deveria ter sido recolhida e guardada para o próximo ano, como se faz depois do término dos feriados.
Passava pela minha janelinha da cozinha e via aquela pobre sucazinha inabitada e sombria, e até que um dia ela sumiu.
Mas não voltou no ano seguinte.
Dois anos depois, aqui estamos novamente. Povo de fé que o judeu é. Está de novo comemorando Sucot, Shmini Atzeret e Simchat Torá. A história ainda não acabou, a guerra continua e nossos irmãos, alguns vivos, muitos mortos permanecem lá.
Hoje é 7 de outubro de 2025. Mas ainda é 7 de outubro de 2023. Os fantasmas e monstros ainda não foram embora.
Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam necessariamente a opinião da Revista Bras.il.
Que lindo texto. Emocionante. Esta ferida será curada, mas as cicatrizes permamecerao para nos lembrar que isto munca mais possa acontecer. Quanto ao café na janela, feliz aquele que estava no seu lado.