A Fiocruz é plural: minhas ideias sobre o conflito Israel e Hamas
Por Maximiliano Ponte, médico-psiquiatra, pesquisador titular da Fiocruz
Diante de manifestações recentes que circulam em nome de grupos internos da Fiocruz, a respeito do conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas que governa a Faixa de Gaza, sinto-me no dever de escrever este texto. É importante deixar claro, desde o início, que tais manifestações não expressam uma posição oficial da Fiocruz, tampouco representam a totalidade de seus servidores. Pelo menos no que me diz respeito, minha posição é claramente divergente e é em nome dessa divergência, fundamentada na minha compreensão de princípios éticos, jurídicos e humanitários, que me pronuncio.
Falo aqui não em nome de um coletivo, mas em meu próprio nome: servidor público, pesquisador titular da Fiocruz, com quase duas décadas de dedicação à saúde pública, à ciência e à defesa da vida e judeu. Aponto essas condições não para reivindicar autoridade exclusiva, mas para, simultaneamente, demarcar meu local de fala e construir a objetivação do meu discurso.
Ao me apresentar assim, deixo claro que não falo do alto de uma neutralidade abstrata, mas a partir de uma vivência situada, profissional, institucional e identitária. É justamente por ocupar esse lugar que me sinto no dever de me manifestar com responsabilidade em um debate que, em muitas instâncias, tem sido conduzido com simplificações morais, distorções conceituais, e seletividade ética.
Reconhecer o lugar de onde se fala não diminui a força de um argumento, ao contrário, confere a ele consistência, enraizamento e compromisso. E é com esse compromisso que escrevo: não para silenciar ninguém, mas para que o pluralismo verdadeiro, que tanto valorizamos na Fiocruz e na democracia, não exclua vozes que também carregam sofrimento, história, coerência e razão.
A Fiocruz é, por história e missão, uma instituição pública, laica, diversa e democrática, que abriga pessoas com diferentes visões, trajetórias e convicções. Essa pluralidade é um valor que precisa ser preservado e protegido, especialmente em tempos de polarização, guerra e sofrimento humano. Justamente por isso, considero importante trazer à sociedade uma outra perspectiva sobre o atual conflito no Oriente Médio.
Proponho que uma análise honesta da situação leve em conta o contexto histórico. E que, pelo menos dois pontos fundamentais – separados por milênios – não podem ser excluídos do debate. O primeiro é o massacre de 7 de outubro de 2023. O segundo é a ligação histórica, étnica e identitária do povo judeu com a terra de Israel.
Em 7 de outubro de 2023, o grupo terrorista Hamas invadiu Israel e assassinou brutalmente mais de 1.200 civis. Bebês foram degolados. Mulheres foram estupradas e seus corpos expostos. Idosos foram queimados vivos. Crianças foram sequestradas. Corpos foram profanados. Tudo isso com registros em vídeo e imagens compartilhadas em tempo real.
O mais chocante: muitos dos assassinados eram judeus progressistas, moradores de kibutzim que por décadas defenderam publicamente os direitos do povo palestino. E ainda mais perturbador: há evidências de que parte da população civil palestina participou ativamente desses atos, saqueando, linchando, filmando e comemorando.
Na minha opinião, qualquer análise ética e séria sobre essa guerra precisa começar por reconhecer o que aconteceu em 7 de outubro. Ignorar esse episódio é silenciar diante do terrorismo. E qualquer posicionamento que omita esse massacre parte de uma narrativa mutilada e moralmente insustentável.
O outro ponto, que não pode jamais ser ignorado, é a relação ancestral entre o povo judeu e a Terra de Israel. Na nossa história mítica e espiritual de origem, estamos ligados àquelas terras desde tempos imemoriais. O próprio nome “judeu” deriva do antigo reino de Judá, de onde fomos expulsos, e para onde, por milênios, ansiamos retornar.
Vivemos diferentes diásporas. Sofremos humilhações, pogroms, expulsões, inquisições e, por fim, o Holocausto. E ainda assim, mantivemos viva a lembrança de Jerusalém. Sentamos no chão e choramos a destruição do Templo pelas mãos de Tito, no dia 9 de Av. Lembramos Jerusalém em nossos casamentos, quando quebramos o copo, em sinal de dor e esperança. Celebramos nossas festas conforme o ciclo das chuvas e colheitas de Israel, mesmo vivendo longe de suas estações. Voltamos os olhos para o leste quando rezamos. Mantivemos acesa, em cada geração, a chama do vínculo entre povo, terra, história e promessa.
Assim, na minha opinião, qualquer análise ética e séria sobre essa guerra precisa reconhecer que os judeus, enquanto povo, têm o direito à autodeterminação e ao retorno ao seu lar ancestral – e o direito de viver com segurança e dignidade no Estado de Israel.
Apresentado este preâmbulo, passo a me deter em três aspectos que considero centrais para um necessário contraponto ao texto divulgado por um coletivo ligado a servidores da Fiocruz: a acusação de genocídio por parte de Israel; a deslegitimação do Estado de Israel; e a proposta de boicote e rompimento com instituições israelenses.
1. A acusação de genocídio por parte de Israel
A ideia de que estaria em curso um genocídio por parte de Israel muitas vezes nasce da percepção de desproporcionalidade no número de mortes entre civis palestinos e israelenses. No entanto, essa diferença não pode ser analisada isoladamente. Para mim, ela revela uma assimetria estrutural: de um lado, Israel investe intensamente na proteção de seus cidadãos – com sistemas de alerta, abrigos antiaéreos e interceptadores de foguetes; de outro, o Hamas expõe deliberadamente sua própria população, utilizando civis como escudo humano.
Hospitais, ambulâncias, centros de saúde, escolas e locais de culto têm sido empregados como depósitos de armas, centros de comando e túneis de ataque. Isso não é especulação – trata-se de uma prática amplamente documentada, inclusive por organismos internacionais. Ao adotar essa tática, o Hamas não apenas coloca sua população em risco, como transforma deliberadamente essas estruturas em alvos militares legítimos, violando frontalmente as Convenções de Genebra e os princípios fundamentais do Direito Internacional Humanitário. O resultado é devastador: vidas palestinas são destruídas não apenas por bombas, mas também pelo cálculo cínico de seus governantes, que instrumentalizam a dor do próprio povo e lucram politicamente com cada cadáver exposto.
De modo recorrente, a acusação de que Israel estaria cometendo um genocídio é feita com base em uma leitura genérica da Convenção da ONU sobre o Crime de Genocídio, de 1948. Contudo, o uso desse termo exige critérios jurídicos rigorosos e responsabilidade histórica. Genocídio não é sinônimo de sofrimento extremo ou de alto número de mortos: trata-se de um crime definido por um elemento essencial – a intenção deliberada de destruir, no todo ou em parte, um grupo étnico, racial, nacional ou religioso. Essa intenção (dolus specialis) não pode ser presumida com base em imagens de guerra ou em desfechos assimétricos; ela precisa ser comprovada de forma inequívoca.
Nada do que se conhece até o momento no atual conflito sustenta tecnicamente esse enquadramento. Trata-se de uma guerra trágica, assimétrica e prolongada – travada entre um Estado soberano que busca proteger sua população e uma organização terrorista que governa Gaza e age deliberadamente para maximizar o sofrimento de civis. Ademais, um dado raramente mencionado fragiliza gravemente a hipótese de genocídio: a população palestina de Gaza mais do que dobrou nas últimas décadas. Segundo dados do Palestinian Central Bureau of Statistics e da ONU, Gaza passou de cerca de 1,1 milhão de habitantes nos anos 2000 para aproximadamente 2,3 milhões em 2022. Mesmo com o impacto da guerra recente, que provocou perdas humanas e deslocamentos, a redução populacional estimada gira em torno de 6% – um efeito brutal do conflito, mas que em nada se aproxima da destruição sistemática exigida para a tipificação de genocídio.
Usar o termo “genocídio” nesse contexto não apenas distorce os fatos e banaliza uma categoria jurídica de extrema gravidade, como também desrespeita a memória das vítimas de genocídios reais – como o Holocausto dos judeus na Europa, Ruanda ou Bósnia. Além disso, converte um debate necessário sobre direitos humanos em plataforma de desinformação política, obscurecendo responsabilidades, bloqueando diálogos e dificultando qualquer avanço rumo à paz.
2. A deslegitimação do Estado de Israel
Narrativas que equiparam Israel a regimes nazistas ou a projetos coloniais europeus buscam, na prática, negar sua legitimidade como Estado soberano e o direito do povo judeu de viver em sua terra ancestral. Essa negação não é apenas historicamente imprecisa – é também moralmente inaceitável. Ignora a profunda e milenar relação entre os judeus e a Terra de Israel, ponto que destaquei no início deste texto como uma das premissas fundamentais para qualquer análise ética e historicamente embasada do conflito.
O Estado de Israel foi criado legalmente, com base na Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1947, que previa a partilha da Palestina em dois Estados: um judeu e um árabe-palestino. Israel aceitou a proposta. A liderança árabe-palestina, no entanto, rejeitou-a, e países árabes lançaram uma ofensiva militar para impedir a criação do Estado judeu em 1948 – e retomando ataques em 1967, 1973 e em diversos outros momentos ao longo das décadas seguintes.
Israel é uma democracia plural e imperfeita, como todas as democracias, mas dotada de instituições sólidas: liberdade de imprensa, sistema judiciário independente e ampla participação política de seus cidadãos – inclusive de mais de dois milhões de árabes israelenses, com representação parlamentar, direitos civis e atuação em todos os setores da sociedade.
Negar a legitimidade de Israel, ou difamar o sionismo como uma ideologia intrinsecamente opressora, é, a meu ver, uma postura desonesta e frequentemente indistinguível do antissemitismo contemporâneo – disfarçado de crítica política, mas que opera na negação do direito à autodeterminação de um único povo entre todos os demais.
3. A proposta de boicote e rompimento com Israel
Por vezes, defende-se que a Fiocruz e outras instituições brasileiras rompam relações acadêmicas, científicas e tecnológicas com Israel. Tal proposta, a meu ver, é profundamente equivocada e compromete princípios essenciais que regem tanto a diplomacia científica quanto a missão da saúde pública.
A ideia de boicotar universidades, centros de pesquisa ou profissionais israelenses ignora o fato de que muitos desses atores estão na vanguarda da produção de conhecimento em áreas sensíveis e fundamentais para a humanidade – como vacinas, medicina de precisão, saúde mental, neurociência, resposta a pandemias, segurança alimentar e enfrentamento de doenças negligenciadas.
Punir instituições e pesquisadores pelo simples fato de serem israelenses não contribui para a paz nem para a justiça. Ao contrário, reproduz uma lógica de isolamento e cancelamento coletivo que compromete a própria ideia de cooperação científica internacional. Além disso, vai de encontro à tradição da Fiocruz como uma instituição que preza pelo intercâmbio, pela construção de pontes e pelo compromisso com a ciência como bem público global.
A produção de conhecimento, a formação de quadros e o desenvolvimento de tecnologias em saúde não podem estar subordinados a critérios políticos que, no limite, prejudicam os mais vulneráveis. Cessar a cooperação com Israel em nome de um suposto imperativo moral é, portanto, incoerente com os valores universais da ciência, com a prática do multilateralismo e com o próprio papel histórico da Fiocruz na promoção da vida, da equidade e da solidariedade internacional.
Considerações finais
É evidente que não cabe a mim, individualmente, definir como a Fiocruz – enquanto instituição pública, científica e plural – deve se posicionar oficialmente diante de um conflito tão complexo e carregado de significados históricos, políticos e humanos. Aliás, creio que, a priori, talvez nem devesse se posicionar. No entanto, como pesquisador titular da casa, acredito que também faz parte da minha missão contribuir para o debate público com responsabilidade, equilíbrio e compromisso ético.
Com base nesses princípios, e mantendo firme o valor da pluralidade que caracteriza a Fiocruz, gostaria de sugerir que um eventual posicionamento institucional pudesse considerar pontos como:
- Reivindicar a libertação imediata e incondicional dos reféns ainda mantidos pelo Hamas;
- Condenar explicitamente o uso de hospitais, ambulâncias, escolas e demais estruturas civis como escudos humanos ou centros militares pelo Hamas, prática que afronta diretamente as Convenções de Genebra e coloca deliberadamente civis palestinos em risco;
- Denunciar o desvio sistemático e o saque de ajuda humanitária pelo Hamas, que impede que alimentos, medicamentos e suprimentos cheguem efetivamente à população de Gaza;
- Reafirmar que o direito à autodeterminação dos povos aplica-se igualmente ao povo judeu, e que o Estado de Israel é um ente legítimo do sistema internacional, reconhecido pela ONU desde 1947;
- Assumir um compromisso institucional firme com o combate ao antissemitismo, inclusive quando este se disfarça sob a forma de negacionismo histórico, simplificações ideológicas ou antissionismo absoluto;
- Fortalecer os laços de cooperação científica com instituições israelenses, especialmente nas áreas da saúde, inovação biomédica e vigilância epidemiológica – domínios em que a ciência deve sempre se sobrepor a divisões políticas e servir à vida.
Na minha opinião, a Fiocruz deve permanecer fiel à sua missão: defender a vida, a ciência, a ética e os direitos humanos – sem seletividade, sem distorções e com a coragem intelectual necessária para sustentar a verdade, mesmo quando ela é incômoda.
Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil)
Texto absolutamente perfeito em suas colocações história, social e científica. É uma vergonha que funcionários da Fiocruz, diretamente beneficiados com o progresso da ciência nos mais diversos países do mundo, venha a se posicionar com idéias descabidas e que mostram uma ideologia se sobrepondo aos princípios científicos. Parabéns ao Dr. Maximiliano Ponte, que com coragem e clareza, dá uma aula aos pobres de espírito, influenciados por palavras sem base moral, ética ou histórica.
O antissemitismo e o antisionismo devem ser extirpados da face da Terra para todo o sempre. Viva o Estado de Israel e o povo judeu. Queremos ter direito à vida e sermos iguais a todos os povos !!!
Ética e Cidadania .
Parabéns ao Dr. Maximiliano Ponte por sua clareza, concisão e precisão.
Viva o Estado de Israel e o povo judeu.
Ética e Cidadania devem prevalecer. Somente queremos ser iguais a todos os povos
Excelente artigo!
O amor ao conhecimento e o respeito à história têm que estar acima de paixões puramente ideológicas e carentes de bases em fatos concretos.
Essa tendência, facilidade ou inclinação a deliberada e automaticamente escolher os judeus para serem culpados denota uma desumanidade baseada na ignorância e por ela mantida, atitude que, infelizmente, tem se mostrado contagiosa.
A vacina seria a leitura de artigos como esse.
Texto sério e coerente, digno do movimento de reflexão da sociedade judia, seja ela israelense ou da diáspora. Importante também para todo aquele cristão, muçulmano, budista (e etc) para saber que a religião é apenas um vértice não determinante na equação da sociedade moderna.
Por mais reflexões como esta.
Este texto deve ser distribuído para os meios de comunicação. É necessária a licença do autor?