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A pequena Romi e sua bebê

Por Vivian Shlesinger

Vocês querem ver a delegacia de Sderot? A pergunta de Liza me pega de surpresa. Delegacia…? Ah, sim, mas… há algo ali para se ver? Sim! O lugar onde tudo aconteceu!

Quando escolhemos fazer o trabalho voluntário nas fábricas em Sderot, a 1,5 km da fronteira com Gaza, não foi pensando no que havia ocorrido na cidade e sim na falta de mão de obra, já que a população da área próxima à fronteira foi levada às regiões mais centrais, mais seguras (o mesmo foi feito com a população no Norte, para protegê-los dos mísseis do Hizbollah). Mas Sderot é a “capital mundial dos abrigos antibombas”. Desde a Intifada no ano 2000, milhares de mísseis foram lançados de Gaza diariamente. Ao soar o tzeva adom (literalmente “cor vermelha”), você tem 15 segundos para chegar ao abrigo. Se você tem 3 anos, ou 83, tem os mesmos 15 segundos. Toda casa ou apartamento tem o quarto seguro. Lojas, mercados, pontos de ônibus, vestiários ao lado das piscinas dos parques comunitários, todos são antibombas. A delegacia de polícia foi construída como uma fortaleza, para resistir a um ataque de mísseis e muito mais. Segurança.

Segurança ficou na outra margem do rio de sangue de 7 de outubro. Com a invasão dos terroristas, os abrigos transformaram-se em armadilhas funestas. Na delegacia a história foi diferente, por isso Liza insistiu que visitássemos. Relutantes, concordamos.

Despedimo-nos de nossos novos amigos. É nosso último dia como voluntários na fábrica de embalagens de papelão, onde conhecemos Liza. Ela nasceu no Uzbequistão, de onde seus pais, médicos, precisaram fugir do antissemitismo com seus 5 filhos. Nos entendemos desde o primeiro dia: ela precisava falar, eu precisava ouvir. Marcelo, nosso chefe, também já no dia em que começamos já quis contar a história de Dolev, seu genro que está refém em Gaza há 5 meses, e eu quis muito ouvir. Agora, após 3 semanas, Dolev é parte de nossa família. A dor é um vínculo poderoso.

Liza pediu a Marcelo autorização para sair da fábrica por uma hora para nos levar à delegacia. Nem precisou explicar muito, só disse, eles não sabem. Ele respondeu com um lento piscar de olhos, sim.

Do distrito industrial até a entrada de Sderot foram poucos minutos. Os guardas não chegaram a parar nosso carro, só olharam firmemente para cada um de nós enquanto passamos bem devagar pelo checkpoint. São jovens de almas antigas, sorriem com um discreto aceno de cabeça. Mais uma presença do que propriamente uma barreira. Nesse momento, presença já é muito. Funcionando na cidade, por enquanto, só duas ou três lojas, um posto de gasolina, nenhum restaurante. Tudo fecha antes das 15h. A noite é um assombro. Liza, que vive em Sderot, está desde 8 de outubro morando com sua família em Tel Aviv, a 70 km, em um apartamento alugado pelo governo. Vai e volta todos os dias para trabalhar. Preciso ficar uns dias em Sderot, limpar minha casa, saímos às pressas, está imunda. Mas ainda não consigo dormir aqui sozinha.

Ao desavisado não dá a impressão de cidade fantasma. A avenida de entrada da cidade é larga, com curvas suaves, canteiros delineados, bancos coloridos. A catástrofe está nos detalhes: um outdoor com furos do tamanho de laranjas, uma lona azul cobrindo de cima a baixo a lateral de um prédio de 6 andares, um ponto de ônibus sinalizado apenas por um cartaz escrito a mão. Pontos de ônibus em Israel normalmente têm banco para sentar, telhado, e muitos, até uma prateleira de livros para que você não fique entediado enquanto espera o ônibus. Nesse aqui, só um frágil poste e o cartaz pendurado. Você vê, e a calculadora de pequenos lutos vai somando.

Seguindo pela avenida, nas pracinhas ajardinadas vimos brinquedos de playground em formato de lagarta, casinha de bonecas, cabana da floresta – tudo muito colorido, enorme. De concreto. Abrigo, diz Liza, apontando para eles. Só 15 segundos entre brincar e morrer.

Ela começa a falar sem parar. A delegacia, um beduíno, um tiroteio… Estou confusa, mas não interrompo. A tensão aumenta no seu tom de voz, cada vez tem mais dificuldade para encontrar as palavras em inglês. Claudio, focado na direção, irritado. Sua linguagem corporal pede silêncio, mas Liza, do banco de trás, não percebe. Paira, invisível, o que estamos prestes a descobrir. Já me acostumei ao fato que tudo pode acontecer, inclusive nada, como diz Houellebecq. Mas meu coração soca o peito em ritmo de funk.

Mais algumas quadras e à esquerda surge uma larga praça de terra. Estacionamos em frente. Não consigo parar de olhar para a praça. Paisagem lunar. Restos de tijolos, pedras de concreto de todos os tamanhos, grades de janela empilhadas em uma torre torta. Vêm à minha mente as fotos dos destroços das Torres Gêmeas, particularmente uma onde se vê parte do esqueleto de aço retorcido, pontas de 6 metros projetando-se do solo em ângulo, um bombeiro em pé, ao lado, diminuto por comparação. De repente entendi que eu estava olhando para os restos mortais de uma demolição. No fundo do terreno, a uns 30 metros, uma escavadeira descomunal abocanha partes irreconhecíveis das ruínas e as cospe em uma vala. Não escuto o barulho da escavadeira, nem qualquer outro. Sem minha permissão, meu cérebro bloqueia o som para organizar as imagens: ali jaz a delegacia de polícia. Os escombros, já bastante reduzidos, recompõem-se na equação da morte: 7/10 é 11/9.

Só então me dou conta dos automóveis passando apressados, como todo israelense ao volante. Ao nosso lado, jovens sentados na grama escutam, sérios, um policial fardado, camisa azul clara com os vincos intactos, em pé à frente do grupo. O rosto anguloso, bronzeado, a postura ereta, mais juventude do que sugere a cabeça grisalha. Os gestos são precisos, econômicos. Quando se vira para apontar esse e aquele lado da avenida, percebe-se a arma, perfeitamente ajustada ao cinto, discreta, mas pronta. Nos aproximamos para ouvi-lo.

Ele fala baixo, voz firme, em um hebraico rápido mas claro. Entendo boa parte. …todos eles idosos, no ponto de ônibus enquanto o motorista da van que os levaria ao Mar Morto trocava o pneu. Mortos à queima roupa. Os terroristas voltaram para se certificar que estavam, cada velhinho de 90 anos (faz uma pausa, inspira visivelmente, e continua) morto mesmo. Por via das dúvidas, outra rajada à queima roupa. O motorista escondeu-se mas foi localizado, atiraram nele também. Fingiu-se de morto. Correram para suas SUV’s e seguiram por esta avenida. Ali – aponta para a esquina – depararam-se com uma família que tentava fugir em seu carro. Dagan, o pai, foi morto imediatamente. Odaya, sua esposa, conseguiu dirigir alguns metros até que Amer, beduíno de 25 anos que trabalhava em Sderot, tomou a direção para ajudar Odaya. Ao se aproximarem da delegacia, Amer e Odaya foram mortos com uma rajada de metralhadora. Duas crianças estavam escondidas no chão do carro, não foram vistas. Ao menos o demônio não é onisciente. Sabemos mais do que gostaríamos do que teriam feito com as crianças caso as tivessem encontrado. Atirando sem parar, os terroristas conseguiram invadir a delegacia. Na rua, Yair, policial que tentava bloquear a passagem dos terroristas, ouviu uma criança gritando dentro do carro. Correu, abriu a porta e deparou-se com Romi, de 6 anos. Você é de Israel?, ela perguntou aos berros, entre lágrimas. Sou de Israel, minha querida, venha comigo, ele respondeu enquanto a tirava do carro. Mas eu tenho a bebê aqui! Só então Yair viu a pequena Lia, de 3 anos, encolhida entre os bancos, escondida pela irmã ‘grande’. Yair tirou as duas e debaixo de muito fogo – você acredita em milagres? – levou-as até um jipe blindado.

Fazia uns 10 graus e ventava bastante ali onde estávamos em pé, ouvindo. Eu tinha mais um casaco no carro mas não podia perder nem uma frase. O policial falava, e um rapaz traduzia ao inglês para os moços reunidos a seus pés. Percebi um mural muito colorido ao lado da praça. No canto esquerdo, a bandeira de Israel, a da Polícia e a de Sderot. Ao centro, um prédio imponente, de dois andares – só podia ser a delegacia. A técnica de perspectiva primária dava um ar juvenil ao desenho, mas nem por isso menos instigante. Acima, como que surgindo do prédio, uma Torá maior que a própria construção, de onde saíam letras hebraicas em azul e branco em direção ao céu, um alef aqui, um lamed ali, outras mais. Lembrei-me que 7 de outubro era Simhat Torá – literalmente “Alegria da Torá”, em que celebra-se o término da leitura anual da Torá. O Povo do Livro comemora com muita alegria, canto e dança o fim da leitura do Livro, e já começa a reler, No começo criou Deus o céu e a terra… A caminho da sinagoga para essa festa, naquela manhã, dezenas de pessoas foram assassinadas. Muitos tinham armas em casa, mas quem leva uma arma à sinagoga? Lá espera-se encontrar Deus, não terroristas endemoniados. No mural, o céu está azul, mas há duas nuvens densas que crescem do solo para o alto – as nuvens da guerra. No centro, o horizonte está em fogo. Por pouco não vi um tanque que torpedeia a delegacia. Tanque? Isso eu só iria entender mais tarde, mas estava tudo ali.

Dezenas de terroristas chegavam em SUV’s, armados para a guerra, atirando em tudo que se mexia. Mais de 20 já estavam dentro do prédio. Alguns policiais conseguiram subir ao telhado, de onde foram resgatados por bombeiros. Do lado de fora, policiais e civis juntaram-se na luta. Naor, 66 anos, ex-membro da SWAT israelense, pediu a um policial que lhe emprestasse sua arma, o que obviamente o rapaz recusou. O policial virou-se para socorrer um ferido e largou a arma por um momento. Naor a agarrou, correu para dentro do edifício em frente à delegacia, subiu 3 andares e da janela de um banheiro, mirou e eliminou vários terroristas. Mas eles eram muitos. Entocaiados dentro da delegacia e com visão privilegiada da rua, continuavam o massacre. Foi ficando claro que não seria possível removê-los de lá sem um alto custo em vidas. O Comando Central deu a ordem: demolir a delegacia. Seria preciso um tanque para isso. Assim se fez.

O tanque no mural. A paisagem lunar. Os escombros. Estava tudo ali, tudo que havia sido.

O pior do relato estava por vir. Ao remover os escombros, foram encontrados os corpos de 26 terroristas com armamento pesado, munição para vários dias, comida, água, mapas precisos. Sderot era apenas a primeira parada. Pretendiam invadir Israel até o Norte. Vieram preparados para isso, só não esperavam essa resistência. Em poucas horas, o exército e a força policial do Sul de Israel organizaram o bloqueio de todos os cruzamentos nas estradas. Nenhum terrorista conseguiu furar o bloqueio. A batalha de Sderot foi sua última parada.

Enquanto eu finalmente entendia a importância dessa batalha, me vinham à mente as cenas que aconteceram nessas mesmas horas, em locais próximos a Sderot. Milhares de terroristas incineravam, estupravam, torturavam, degolavam e explodiam os moradores do kibutzim e os jovens no festival Nova. Quem estava em Sderot não tinha ideia disso, e vice-versa. Se ouvissem, não acreditariam.

Quando a palestra terminou fomos conversar com o policial. Somos do Brasil, obrigada pelo relato, sou escritora e quero escrever o que aconteceu aqui. Ele sorriu, estendeu a mão, Sabatai Grabartzik, muito prazer (Por sorte Lula ainda não havia proferido suas profundas reflexões acerca de Hitler, a Shoah e a guerra em Gaza. Depois desse pronunciamento grotesco, a palavra “Brasil” passou a ser recebida de forma bem diferente). Precisamos sim que vocês contem; nos primeiros dias da guerra vieram jornalistas do mundo todo, mas agora a história não vende mais jornais. Essa guerra só pode ser entendida se o mundo souber como isso começou! Trocamos números de whatsapp, ele prometeu enviar informações atualizadas sempre que possível, e tem cumprido; eu prometi contar, e aqui estamos.

Caminhamos de volta para o carro, cada um com seu silêncio. Liza provavelmente repassava os novos detalhes do que já sabia. Para Claudio e eu, era uma revelação arrasadora. Não o sacrifício – palavra fora de moda – dos 20 policiais e 50 civis que caíram nessa batalha. Isso é heroísmo – também fora de moda, a palavra e o ato – que conhecemos há milênios. O que nos golpeou naquele dia, ouvindo o policial Sabatai Grabartzik, foi perceber que estivemos de olhos vendados a alguns passos do abismo. Foi a arma secreta de Israel que nos afastou do abismo. A imensa coragem da pequena Romi para salvar “sua” bebê, essa arma não pode ser roubada nem copiada. Ou ela existe, ou. Falar em “bem” e “mal” também não se usa mais, então me ajudem a encontrar a palavra justa para descrever essa luta. Como escreveu o jornalista Maz Friedman, a verdade de uma dada época já existe antes que seja visível para a maioria de nós.

Foto: Revista Bras.il. Sderot

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