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Best friend forever

Por Nelson Menda

É comum que meninos e meninas, quando estão confraternizando com crianças da mesma faixa etária, estabeleçam pactos de amizade que pretendem, em sua ingênua inocência, durar por toda a vida. Muitas dessas promessas, verdade seja dita, acabam se concretizando, apesar da realidade obrigar as crianças, ao crescer, a tomar rumos distintos em suas respectivas trajetórias de vida.

Sempre gostei de manter vivas antigas amizades, aqueles companheiros da infância e adolescência com quem, graças ao milagre da Internet, consigo me corresponder até os dias atuais, apesar do distanciamento geográfico. Os americanos dão muito valor a esses primeiros amigos, a quem denominam BFF, abreviatura de Best Friend Forever, ou seja, Melhor Amigo Para Sempre.

Fui cultivando amizades ao longo da vida com pessoas com quem me identifiquei. Até hoje mantenho um bom rol de amigos e amigas, apesar de muitos deles terem se distanciado, por distintas razões. Portador de imaginação fértil, costumo utilizar aquele tempo que precede e sucede os sonhos, quando estou tentando enganar o sono, para rememorar episódios agradáveis do passado. É uma das maneiras que encontrei para manter vivos, pelo menos na imaginação, os amigos e amigas que já se foram. Acredito que a memória seja compartimental e que existam espaços distintos para arquivar os bons momentos que pudemos usufruir com parentes e amigos, assim mesmo, de forma distinta.

Tive a felicidade de nascer em uma grande família, rodeado por tios, tias, primos e primas. Verdade seja dita, muito mais primos do que primas. Pelo fato de não existir televisão durante nossa infância, os programas preferidos de muitas famílias eram as visitas aos parentes, geralmente nos finais de semana. Antes da chegada dos arranha-céus, as pessoas costumavam residir em casas com quintais, onde havia espaço para todo tipo de distração e brincadeiras.

Na casa em que passei a maior parte da infância, em Porto Alegre, dispúnhamos de um amplo quintal, onde se destacava uma frondosa pereira, que produzia, todos os anos, uma enorme quantidade de frutos. Além, é claro, de propiciar a oportunidade de ficar subindo e descendo o tempo todo utilizando seus galhos como se fossem degraus de uma escada. Ao que lembre, nunca caí dessa árvore que produzia, se não me equivoco, peras da variedade Bartlet, que chamávamos de Pera D’água. Essas peras podiam ser consumidas cruas ou preparadas em compotas caseiras com a adição de açúcar e cravo.

O cravo, por sinal um dos responsáveis pela descoberta do caminho marítimo para as Índias, juntamente com a pimenta e a canela, propiciava um gostinho especial às compotas. Não deveriam ser mastigados ou engolidos, por recomendação de Dona Marieta, minha ídishe mamma, que deve ter aprendido com sua mãe, a Bobby, os segredos da culinária e da costura. Como um autêntico rebelde, certo dia me insurgi e decidi morder um cravo para desvendar seu sabor. Me arrependi amargamente, porque o gosto, bastante desagradável, permaneceu na boca durante muito tempo. Valeu a experiência e nunca mais quis repeti-la.

Nos fundos do quintal, longe da pereira e ao lado de uma frondosa paineira, meu pai tinha mandado construir um quartinho para guardar tralhas e travesseiros antigos, verdadeiras relíquias de família, confeccionados com penas de ganso. Esse quartinho era dividido em duas partes. Em uma delas funcionava minha oficina de marcenaria, operada com as aparas de madeira doadas pelas fábricas de móveis em que meu pai trabalhava como contador. Na outra divisão ficavam guardados, além dos grandes travesseiros, coloridos painéis geográficos de diferentes regiões do globo, provável herança do meu avô materno, o Zeide, já falecido. Ele gostava de colecionar tudo o que fosse colecionável, como selos, moedas, bengalas, antiguidades, utilidades domésticas e também grandes painéis com a reprodução de mapas de distintas regiões do globo.

Lembro de um desses painéis, que exibia, em detalhes, o Arquipélago das Aleutas, um colar de ilhas do Ártico que vai do Alaska à Rússia. Costumava viajar, na imaginação, por esse arquipélago, e cheguei a conhecer, já adulto, uma pequena parte dessas ilhas, no trecho mais próximo ao Alaska. As Aleutas, constituídas por 14 grandes e 55 pequenas ilhas de origem vulcânica, cobertas por gelo e, na maior parte, desabitadas, sempre despertaram minha curiosidade. Nunca consegui entender a razão do meu avô colecionar esses painéis, que serviam para que eu, ao contemplá-los, divagasse a respeito de inatingíveis viagens imaginárias. O que chamava minha atenção era a disposição, em forma de semicírculo, desse anel de ilhas que uniriam – ou separariam – a Rússia do território norte-americano do Alaska.

Essas ilhas quase mudaram o curso da Segunda Guerra, pois o Império japonês, sorrateiramente, foi conquistando uma por uma, planejando surpreender os aliados pela retaguarda. Quando americanos e canadenses se deram conta, tiveram de construir, em ritmo acelerado, uma extensa rodovia que subia pela costa oeste do Canadá no sentido do Polo Norte, até chegar ao Alaska. Era a única maneira de poder transportar, por via rodoviária, armamentos e suprimentos militares pesados com o objetivo de estabelecer uma linha defensiva nesse desguarnecido flanco. Os japoneses conseguiram conquistar duas ilhas estrategicamente importantes das Aleutas, Attu e Kisha, aprisionando e matando grande parte de seus moradores, tanto nativos quanto norte-americanos. Os aviões militares da época, antes da era do jato, não possuíam autonomia para longos voos, daí o plano japonês de utilizar uma tática estilo dominó de ir tomando o arquipélago, ilha por ilha, até chegar ao Alaska, que pertencia aos Estados Unidos e, a partir daí, invadir o Canadá e o próprio território norte-americano.

Nunca entendi direito a razão de meu avô materno, um pacifista que teve de sair às pressas da Inglaterra para não ser convocado a lutar na Primeira Guerra, dispor de uma coleção de grandes painéis geográficos que exibiam aquele estratégico colar insular. Pelo jeito, vou ter de continuar sem entender, mas o fato é que sempre gostei de colecionar mapas talvez, até, por atavismo familiar. Já adulto, tive a oportunidade de visitar o Alaska e conhecer uma parte de sua costa oeste, onde se inicia, ou termina, o Círculo Polar Ártico, com suas gigantescas geleiras.

Devido ao aquecimento global essas geleiras estão, pouco a pouco, derretendo e despencando no mar. Será que irão desaparecer por completo? Faço votos que o bom senso volte a imperar entre as nações e que a natureza, tão maltratada, passe a ser preservada. Cruzemos os dedos ou, como afirmam os norte-americanos, let’s cross the fingers, em que o português e o inglês possuem o mesmo sentido. O Polo Norte e o Círculo Polar Ártico exercem importante papel na preservação do clima do hemisfério norte, para contrabalançar a missão das florestas nativas do hemisfério sul. Daí a importância de manter esses ecossistemas preservados e, na medida do possível, intactos.

Foto: Annie Spratt (Pixabay)

2 thoughts on “Best friend forever

  • Magale Dorfman

    Sempre aprendo muito com seus textos…historias familiares e em geral…Gostei do titulo deste texto, pena que v.passou mais ou menos batido…muito assunto, como diz v.,imaginacao fertil!!!Volte a falar dos BFF…adorei!!!! Abraços.

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