Já vi esse filme
Por Nelson Menda
Voltou a chover em Porto Alegre, minha cidade natal. Até aí, nenhuma novidade, pois chover faz parte da rotina de muitas localidades. O problema é que o Guaíba, que conheci como um rio e em cujas águas aprendi a nadar, acabou sendo rebatizado, tempos depois, como um lago! Ele não deve ter gostado dessa mudança de categoria, pois sua denominação, de nítida inspiração indígena, o qualifica como um rio, por sinal bastante importante para a economia daquela região.
O Rio Grande do Sul é um estado com vocação industrial, agrícola, pastoril e política. Já se destacou na política, por intermédio de grandes lideranças de presença nacional. Durante muito tempo, esteve dividido entre chimangos e maragatos, que se odiavam a ponto de se matarem uns aos outros. Essa rivalidade insana só amainou depois que uma importante liderança, capitaneada por Oswaldo Aranha, conseguiu pacificar o estado. Talvez o Guaíba represente, de forma simbólica, com o cíclico sobe/desce de suas águas, essa divisão entre seus orgulhosos habitantes.
Durante a penúltima enchente cheguei a sugerir a uma prima residente na capital gaúcha que talvez tivesse chegado o momento de fazer as malas e, como se afirma popularmente, tirar o time de campo.
O Rio Grande do Sul possui uma das maiores lagoas de água doce do planeta, subaproveitada do ponto de vista turístico e econômico. Suas águas calmas e de temperatura agradável possibilitam a prática de um sem número de atividades de lazer, além de servir de abrigo para a reprodução de distintas espécies de peixes. Verdade seja dita, existem diversas colônias de pescadores em diferentes pontos do imenso Guaíba, mas com características artesanais, atividade que poderia ser incrementada, em função da própria extensão desse gigantesco reservatório hídrico.
O lançamento de esgotos sem tratamento em suas águas vem transformando parte desse rico manancial em uma área degredada e carente de vida. A exemplo de outras regiões do país, o Rio Grande do Sul conta com uma cobertura vegetal rica em eucaliptos. Essas imponentes árvores, nativas da Austrália, são conhecidas pelo crescimento rápido, às custas da drenagem do solo e subsolo. Suas folhas exalam um delicado perfume, sendo utilizadas como recurso para combater os mosquitos, abundantes e vorazes em todo o estado, especialmente nos meses de verão.
Durante minha infância, meus avós e tios paternos, juntamente com meu pai, construíram uma casa para curtir os finais de semana e os meses de verão em uma localidade à margem direita do Guaíba, poeticamente denominada Praia da Alegria. A água para o consumo provinha de um poço bastante profundo que necessitava ser escavado de tempos em tempos. Qual a razão? As raízes dos eucaliptos dos terrenos vizinhos sugavam continuamente a água do subsolo.
Para agravar a situação, há um par de décadas o governo do estado permitiu a instalação de uma empresa multinacional especializada na produção de celulose, o que é considerado uma das atividades mais poluidoras do planeta. Foi a pá de cal no que ainda restava de vida no pobre Guaíba.
Minha família paterna tinha uma relação de amor com o rio. Quando meus avós, provenientes de Lule Burgás, Turquia, chegaram ao Brasil, nas primeiras décadas do século passado, se estabeleceram na chamada Cidade Baixa, onde já residia a maior parte da coletividade sefaradi do estado.
Antes mesmo de erguer sua primeira residência, adquiriram um terreno na Praia da Alegria. Ainda não existia a ponte sobre o Guaíba e o acesso à Praia da Alegria era realizado por vapores em uma viagem que durava um par de horas. Esses vapores eram impulsionados por um sistema semelhante ao utilizado nos grandes barcos do Mississipi. Conservo na memória muitas recordações dessa época, tanto das temporadas de verão na Praia da Alegria quanto do restante do ano, na Cidade Baixa, bairro de Porto Alegre colonizado por açorianos.
Foi na Cidade Baixa que meus ancestrais ergueram sua primeira sinagoga, o Centro Hebraico Riograndense, que chamávamos de Kal. Meu avô paterno, David Menda, de quem herdei o prenome, dirigia os serviços religiosos, em ladino e hebraico. Somente ele tinha conhecimento litúrgico e fôlego para conseguir extrair do shofar, milenar instrumento de sopro, aqueles acordes característicos do final das rezas.
Tudo isso é parte integrante do meu passado, pois o mundo foi mudando pouco a pouco, em câmara lenta, sem que nos déssemos conta. Além das lembranças, restaram dois pórticos: o da Praia da Alegria, no município de Guaíba e do Centro Hebraico, em Porto Alegre. Essas recordações se assemelham à reprise de um filme que assistimos há tempos e do qual, volta e meia, voltamos a nos recordar.
Foto: Fotos Antigas RS (Flickr). Pórtico Alegria, 1943
Gaúcha da Mal. Floriano (parte alta), a uma quadra do Solar dos Castiel/Menda, acompanho com muito gosto teu blog!