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Sinagogas

Por Nelson Menda

É complicado, para um forasteiro, encontrar um Rabino e uma Sinagoga onde possa oficiar sua cerimônia matrimonial.

Em Porto Alegre, dispúnhamos do Centro Hebraico, o Kal, única sinagoga sefaradi da cidade, que meus parentes tinham ajudado a fundar. Meu avô paterno fazia parte do grupo de oficiantes, sendo encarregado de tocar o Shofar ao final das cerimônias. Ocupava, além disso, lugar de destaque na Bimá, o púlpito onde as rezas e os cânticos eram entoados.

É importante fazer um parênteses para esclarecer que, ao contrário de grande parte das coletividades esquenazis, subdivididas em ortodoxas, reformistas, conservadoras e conservativas, os sefaradis nunca gostaram de modificar seus ritos. Sempre fizeram questão de mantê-los fiéis à maneira como seus ancestrais rezavam, ou meldavam, como nós, turquinos, nos expressávamos em ladino.

Todavia, ao me transferir para o Rio acabei conhecendo sefaradis provenientes de outros países. Como os marroquinos, para citar um exemplo, que além do português falavam e rezavam em haquetía, aparentada com o ladino e entremeada por expressões árabes. E também os sefaradis sírios, libaneses e egípcios, bem mais observantes do que os turcos, que rezavam em hebraico e árabe e falavam, dentro de suas casas, também o francês. Era um mundo inteiramente novo para mim. Custei a me aprofundar no conhecimento dessas distintas peculiaridades porque fazia parte de um grupo duplamente minoritário, tanto em relação à maioria da população brasileira quanto à própria coletividade judaica, onde os esquenazis eram majoritários.

Considerando a predominância cristã entre a população brasileira, nós, sefaradis, poderíamos ser classificados como a minoria da minoria. No meu caso particular, sempre me interessei em procurar entender essas diferentes peculiaridades, pois minha curiosidade era ligada tanto aos aspectos humanos e culturais do judaísmo quanto ao litúrgico propriamente dito.

Sabia como me portar dentro da Sinagoga, de permanecer sentado ou em pé quando a cerimônia assim o exigisse, de utilizar talit (manto ritual) e kipá (solidéu) e todas as demais particularidades de cada fase do rito. Observei que, ao contrário da prática de muitos templos esquenazis, nas sinagogas sefaradis os oficiantes rezavam voltados para o Aron Akodesh, a arca onde ficavam os rolos da torá, bíblia judaica.

Minha ligação com o judaísmo sempre foi mais relacionada à tradição histórica e filosófica do que com os aspectos puramente religiosos. Era perceptível a existência de uma característica comum entre os judeus, educados para se destacar como os melhores, os primeiros da turma. E ai de quem não o fosse. Depois acabei descobrindo que esse princípio não era exclusivamente judaico, pois entre os orientais, como japoneses e chineses, por exemplo, e grande parte dos imigrantes, vencer era uma questão de honra. Isso explica a razão desses grupos minoritários se destacarem frente ao restante da população, especialmente no Brasil. O diferencial é que os judeus, apesar de discriminados e perseguidos geração após geração, produziram muitos gênios nos diferentes campos do conhecimento. Teria sido apenas coincidência ou uma dedicação especial às atividades exercidas? Deixo a resposta a critério dos leitores.

Mas não era isso o que me preocupava naqueles primeiros tempos do Rio de Janeiro. Já estava pensando em casar, queria que a cerimônia ocorresse em uma sinagoga, apesar da futura mãe das minhas filhas pertencer a uma família católica. Na realidade, tinha de encontrar não apenas uma Sinagoga, mas um templo que realizasse conversões e casamentos, como era desejo da própria noiva. Isso em uma cidade como o Rio, enorme e desconhecida para um recém-chegado.

Pergunta daqui e dali fiquei sabendo que apenas uma Sinagoga e um Rabino aceitariam oficiar as duas cerimônias. A Sinagoga era a ARI, Associação Religiosa Israelita, fundada por judeus de origem alemã, grande parte deles refugiados do nazismo. O Rabino, um intelectual reconhecido por sua cultura e profundo conhecimento da religião mosaica, Henrique Lemle. Mas como conseguir ultrapassar a verdadeira barreira humana que o cercava? Era esse o problema que me afligia, pois o tempo corria e não conseguia vislumbrar nenhuma luz no final daquele complicado túnel.

Já tinha resolvido minha situação profissional, estava residindo em Ipanema e com disponibilidade para realizar outro importante projeto, que era o de fazer do inglês minha segunda língua. A solução apareceu como um passe de mágica. Uma amiga que também estudava inglês no mesmo curso, percebendo minha ansiedade quis saber o que me preocupava. Essa senhora, judia de origem alemã, era nada mais, nada menos, do que prima do Rabino Lemle. Quando tomou conhecimento do problema ligou para ele e conseguiu agendar um encontro.

Fui recebido de forma cordial, sendo esclarecido que a conversão deveria ser o primeiro passo para que o casamento pudesse ser oficiado na ARI. Foi exatamente o que ocorreu um ano depois, tempo discorrido com o aprendizado do hebraico e o banho ritual em uma mikvê por parte da noiva. Mais adiante, já familiarizado com a realidade judaica carioca e disposto a utilizar a experiência que tinha acumulado até então, julguei ter chegado o momento de saldar minha dívida de gratidão com minha ascendência sefaradi. Provável fruto da própria tradição ibérica e oriental, cheguei à conclusão que muitos sefaradis iam à sinagoga não só para encontrar amigos e rezar, mas também para fazer prevalecer seus pontos de vista sobre qualquer assunto.

Lembro, certa vez, que em uma das mais tradicionais sinagogas sefaradis do Rio, dois de seus dirigentes quase foram às vias de fato na hora de escolher o cardápio para uma festividade. Um deles queria que fosse servido feijão branco, ao passo que o outro insistia na opção pelo grão de bico. Apesar do tema profano, a coletividade quase se fragmentou de forma irreversível. De outra feita, na hora de apurar os votos para a eleição do próximo Presidente da entidade, em que o resultado estava apertado, um dos candidatos pegou a urna e levou para sua casa. “Vou contá-los na minha residência” afirmou na maior sem cerimônia. Afinal, muitos sefaradis eram provenientes de países governados com mão de ferro por tiranos, onde o poder passava de pai para filho e democracia era uma palavra desconhecida.

Em alguns templos esquenazis também se discutia bastante sobre tudo e todos, mas muitos sefaradis levavam as contendas para o plano pessoal, o que redundava, muitas vezes, em novas divisões e subdivisões da própria coletividade. Seria preciso criar alguma alternativa que permitisse transformar o espírito acalorado dos judeus de origem turca, grega, síria, egípcia, libanesa e marroquina em algo proveitoso e construtivo. Era esse o desafio que deveria ser enfrentado e achei que poderia colaborar utilizando minha experiência no trato com as entidades médicas das quais tinha participado e onde havia conhecido excelentes lideranças, com destaque para o também ortopedista e sefaradi Marcos Musafir.

Esse colega, além de ter planejado e dirigido importantes eventos científicos no Brasil e exterior, conhecia as peculiaridades da coletividade judaica à qual pertencia. Minha ideia seria organizar encontros sefaradis nos moldes dos grandes congressos médicos. Conversei com a ativista Diane Kuperman, que sugeriu apresentarmos a proposta para uma das grandes lideranças sefaradis a nível nacional e mundial, Alberto Nasser, z”l (de saudosa memória).

Nasser, um ativista que tinha presidido a Conib, Confederação Israelita do Brasil, empresário de grande visão, comprou o projeto na hora. A proposta incluía a formação de um Conselho, no qual teriam assento os dirigentes de todas as instituições judaicas do rito sefaradi do Rio. E, também, da organização de eventos, à semelhança dos grandes congresso médicos, com a apresentação de temas livres, conferências e a presença de convidados de projeção nacional e internacional. O Congresso, por minha sugestão, recebeu o nome de Confarad, que conserva até os dias de hoje e, Baruch Ashem (Graças a Deus) já está na 15ª edição.

Em paralelo, para coroar o tripé de propostas, tinha sido organizado e já estava em plena atividade um grupo musical, o “Angeles y Malahines”, dedicado à preservação do cancioneiro sefaradi em ladino. Para a realização dos ensaios, na Sinagoga Beth-El e a escolha do repertório pudemos contar com a eficiente colaboração da dirigente comunitária Vitória Sulam Saul z”l, sucedida na regência por José Behar, assessorado por sua esposa, a incansável Vivian Calderon Behar, aos quais vieram se somar o violinista Leon Rousseau e um dedicado grupo de músicos. A Professora Cecilia Fonseca da Silva, professora de espanhol no Instituto Rio Branco, uma entusiasta do Ladino, incorporou-se ao grupo, com a realização de palestras em diversas instituições e o lançamento de um livro dedicado ao tema: “Os Caminhos de Sefarad”, que tive a honra de prefaciar.

A recente pandemia, que poderia ter dificultado os encontros presenciais tanto do Conselho Sefaradi quanto do próprio Confarad, paradoxalmente, acabou servindo para fortalecer essas iniciativas. Em tempos de distanciamento social, o 15º Confarad, que acaba de acontecer, pode ser realizado pela Internet, com a participação de grandes nomes da cultura sefaradi tanto do Brasil quanto do exterior. Quem não teve a oportunidade de participar ou deseja rever seus principais momentos basta acessar o site www.confarad.org.

Nas palavras da Professora Margalit Bejarano, da Universidade Hebraica de Jerusalém, tanto o Conselho Sefaradi quanto o Confarad são iniciativas únicas no campo da cultura e tradição sefaradis e isso é motivo de orgulho e satisfação para todos nós, seus idealizadores.

Para finalizar, é importante salientar que os sefaradis cariocas, outrora atuando de maneira independente, hoje formam um corpo comunitário de primeira ordem e a própria construção da moderna e funcional Sinagoga Edmond J. Safra, em Ipanema, sob a direção de Moisés Balassiano e a supervisão religiosa do Rabino Gabriel Aboutboul são provas contundentes de que é possível transformar um sonho em concreta realidade. Muito contribuiu para a realização desse projeto a atuação do ativista Charles Kboudi, z”l, que tomou a iniciativa de adquirir o terreno, na Rua Nascimento Silva, com apoio de Edmond Safra, seu amigo, às vésperas de seu trágico falecimento. Tenho muito orgulho em afirmar que participei do lançamento da pedra fundamental desse moderno templo.

Quando me refiro às grandes lideranças comunitárias cariocas não poderia deixar de mencionar os nomes de meu fraterno amigo Haim Elias Nigri, z”l, vitimado pela Covid e dos incansáveis Max Nahmias, Presidente do Museu Judaico do Rio e de Luiz Benyosef, consagrado homem de ciências e criador de diversos e vitoriosos projetos na área comunitária, com destaque para o Memorial Judaico de Vassouras. Também gostaria de mencionar a atuação do casal Moisés e Silene Balassiano. Se Charles Kboudi teve o mérito de dar o pontapé inicial no vitorioso projeto da construção da Sinagoga de Ipanema, Moisés Balassiano pode finalizá-lo com chave de ouro, ao se empenhar na obtenção de recursos para sua concretização. Para quem ainda não fez, recomendo uma visita presencial ou virtual à instituição, clicando em www.sinagogadeipanema.com.br onde poderá constatar que, no caso da Sinagoga Edmond J. Safra, o esforço e a dedicação de um punhado de ativistas conseguiu operar um autêntico milagre.

Foto: Sinagoga de Ipanema

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