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Vivendo e aprendendo

Por Nelson Menda

Quem tomou a iniciativa de se mudar do Brasil para os Estados Unidos foi minha filha mais velha, lá se vão um bom par de anos. Eu já alimentava essa ideia há algum tempo, mas não era fácil concretizar um projeto dessa envergadura. Felizmente, tive condições de enviá-la para um programa de intercâmbio de seis meses nos Estados Unidos, que serviu para que ela conhecesse a realidade norte-americana.

Ela impôs uma condição para vir aos States: tínhamos de nos falar ao telefone todo santo dia. Naquele tempo não existia Internet nem WhatsApp e as ligações eram caríssimas. Cumpri minha promessa e ligava para ela diariamente.

Esse contato entre nós foi extremamente importante, pois nem sempre as famílias que se dispunham a hospedar alunos de outros países agiam de forma correta. Na realidade, algumas delas faziam da recepção e hospedagem de alunos estrangeiros um meio de vida. Isso chegou a acontecer com a primeira família onde ela foi recebida. Inicialmente, recolheram o dinheiro que ela tinha levado como reserva para alguma emergência, o que me pareceu estranho. A seguir, exigiram que ela participasse de um culto na igreja evangélica que frequentavam todos os domingos, desde cedo até o final do dia. Ela queria dedicar o tempo livre de que dispunha para conhecer os lugares pitorescos da cidade, pois frequentava as aulas pela manhã e à tarde de segunda à sexta-feira.

Esses fatos tornaram possível solicitar ao programa a transferência para uma outra família, dessa feita judaica. Não que minha filha fosse muito religiosa, mas o que ela queria era ficar livre dessa primeira família e recuperar a reserva que tinha levado para os seis meses em que deveria permanecer no país e que tinha sido recolhida. Foi um alívio para ela e para mim, pois aquela primeira família fazia da hospedagem de estudantes estrangeiros não uma aproximação entre os países, objetivo primordial do programa de intercâmbio, mas um meio de vida.

Cheguei a visitá-la durante o período de intercâmbio, na cidade de Columbus, Ohio. Foi em pleno inverno e tive de enfrentar um dos maiores frios de toda minha vida. Apesar de ter nascido e passado a maior parte da infância e adolescência, além do período em que realizei o curso superior, no Rio Grande do Sul, nunca gostei do frio. Lembro que, nessa viagem a Columbus, a porta do carro que tinha alugado congelou de tal maneira que não queria abrir. Fui salvo por um americano prestativo que trouxe, sabe-se lá de onde, uma chaleira com água quente que foi despejada na fechadura do veículo e a porta se abriu como por milagre.

No retorno do intercâmbio ao Brasil fui surpreendido pela vontade dela em retornar aos Estados Unidos, dessa feita para cursar uma faculdade. Como não existia Internet, os contatos eram realizados por intermédio dos Correios. Como escolher uma escola de nível superior para poder inscrevê-la? Fomos auxiliados por amigos e parentes que já tinham passado pela mesma experiência, além dos encontros periódicos organizados por universidades norte-americanas nas principais cidades do Brasil.

Em um desses eventos educacionais foi possível recolher prospectos de diferentes instituições de ensino superior norte-americanas. A próxima etapa foi analisar esse material e redigir cartas a cada instituição que parecesse interessante. Essa fase levou, acreditem, um ano inteiro. Todo dia, após a janta, sentávamos para ler com atenção as exigências de cada faculdade. Passamos a redigir e enviar cartas a cada uma delas. Algumas responderam favoravelmente, outras negaram ou informaram que só a aceitariam para o segundo semestre. Havia um complicador a mais, pois o período letivo do Brasil é diferente do norte-americano.

And last but not least, tínhamos decidido visitar e conhecer, pessoalmente, cada uma das escolas pré-selecionadas. Isso foi importantíssimo, pois algumas delas, que ostentavam nomes pomposos, não passavam de instituições caça-níqueis. Outras, depois ficamos sabendo, estavam localizadas em regiões tão inseguras que os alunos precisavam ser acompanhados por um policial para se locomover entre os dormitórios e as salas de aula. É importante ressaltar que, naquela época, ainda não tinham começado a ocorrer os massacres de estudantes, que acabaram por se constituir em uma verdadeira praga, tendo se alastrado, lamentavelmente, ao Brasil.

Apesar de todos os percalços, ela acabou aceita em uma excelente faculdade, realizou o sonho de se graduar em uma universidade norte-americana e acabou sendo contratada, posteriormente, professora da própria instituição.

A segunda filha seguiu os passos da primeira e as duas, a seguir, me carregaram, no bom sentido, para lá. Ou, no presente caso, para cá, pois estou redigindo este texto na chamada Space Coast dos Estados Unidos, onde moro, e de onde não tenciono me mudar tão cedo. Por falar na Space Coast, enquanto preparava o presente texto, um foguete espacial riscou os céus, com seu característico ruído, que lembra o de um buscapé. É um silvar que já não chama tanto a atenção, pois passou a fazer parte da rotina local. Além da Nasa, as empresas Spacex e Blue Origin, sediadas na região, também constroem e lançam naves aos céus, materializando as profecias do visionário Júlio Verne. Que sorte a minha, de poder testemunhar e compartilhar com os leitores algo que, até então, só se conhecia pelos livros e filmes de ficção científica.

Foto: ThaddeusCesCC BY-SA 4.0, (Wikimedia Commons)

3 thoughts on “Vivendo e aprendendo

  • Julio Snitcovsky

    Já li varios textos seus anteriormente, sempre muito bons e, bem escritos. Este não é exceção.

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  • Nelson Menda

    Obrigado, Julio, por seu comentário. Nelson

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  • Feliciano Mesquita

    Pelo visto, você está próximo de fazer uma visita à Lua! Espero que não resolva ir morar por lá!
    Muito boa a sua mensagem. Forte abraço

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