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Azenha

Por Nelson Menda

Azenha é uma palavra portuguesa utilizada para designar um moinho movido pela força da água. Quando me mudei da Cidade Baixa para o bairro da Azenha, em Porto Alegre, esse antigo moinho que, provavelmente, deve ter funcionado no Arroio Dilúvio, já não existia mais. Todavia, o nome foi mantido e serviu para marcar uma área da cidade que coincidiu com um dos períodos mais agradáveis da minha adolescência.

Depois de termos residido, desde meu nascimento, em uma série de construções antigas na Cidade Baixa, meu pai conseguiu concretizar seu antigo sonho de adquirir um terreno, contratar um engenheiro e mandar construir uma nova residência.

A frente dessa casa dava para uma artéria cuja denominação homenageava um dos muitos heróis da história brasileira. No entanto, o melhor dessa nova moradia, na realidade, só vim descobrir algum tempo depois, ao abrir um pequeno portão nos fundos do nosso quintal e descortinar uma ruazinha bastante simpática, sem saída, com casinhas dos dois lados.

Nessas casas e demais moradias do entorno, por uma feliz coincidência, residiam jovens da nossa faixa etária, que já se conheciam desde o curso primário, no Grupo Escolar Duque de Caxias. Muitas de suas mães eram – ou tinham sido – professoras daquela escola e tratavam seus ex-alunos como se fossem da própria família.

Assim que saí a explorar meus novos domínios fui cercado pelos filhos e filhas dos vizinhos, pois havia uma curiosidade mútua em nos conhecermos. De cara, fui convidado a participar de uma “reunião dançante”, sábado à noite, no “Cairo Clube”, na realidade um pequeno salão nos fundos da casa da Dona Célia, mãe da Isa e uma das professoras daquele Grupo Escolar. Lembro que a música, reproduzida em uma pequena vitrola emprestada por algum morador, e que fazia o maior sucesso na época, se chamava Cerejeira Rosa. Estranho, pois, ao que eu saiba, o clima do Brasil não era propício ao cultivo de cerejas. Vai ver, era uma adaptação de uma canção latina ou norte-americana, mas sábado após sábado tínhamos um encontro dançante, sempre concorrido, no mesmo local, e dê-lhe Cerejeira Rosa.

Éramos autorizados a consumir refrigerantes e, sob os olhares atentos e vigilantes dos mais velhos, a ingerir a bebida da época, denominada Cuba Libre, uma mistura de rum com Coca-Cola. Preferíamos, como bons patriotas e bairristas, substituir a Coca por Pepsi, que tentavam nos impingir como sendo 100% gaúcha. Como o rum era caro, acabou sendo substituído por uma outra bebida nacional de gosto e sabor duvidosos, mas com o preço bem mais acessível, que tinha o sugestivo nome de Fogo Paulista. E olhe que fogo, naquela época, era sinônimo de porre e deveria existir uma relação entre causa e efeito, pois provar aquela aguardente braba era a certeza de ter de sair carregado da festa. Como nunca gostei de bebidas alcoólicas nem de dançar, ficava só no refrigerante, observando o movimento e conversando com meus novos amigos e amigas.

No meio do encontro a música foi interrompida e teve início um espetáculo teatral caseiro. Um bonequinho, de nome Pirulito, na realidade uma marionete sustentada por fios de nylon e trajado como um autêntico pernambucano, se apresentou dançando o frevo “Vassourinha”. Quem havia confeccionado o Pirulito, que conseguia reproduzir com perfeição e leveza os intrincados passos da coreografia nordestina, tinha sido a professora de Belas Artes do Grupo Escolar Duque de Caxias, Dona Odila Sena.

Dona Odila inspirou a criação não só do Pirulito, mas de uma série de outros personagens, que deram origem ao TIM, o Teatro Infantil de Marionetes, que completou 66 anos de ininterruptas atividades em 2020 e que já está na terceira ou quarta geração de componentes humanos, ou seja, os manipuladores dos bonecos. Tive a satisfação de ter sido convidado a participar de apresentações do TIM em diversas localidades do Rio Grande do Sul e também de uma excursão artística a São Paulo.

Na capital paulista realizamos uma temporada de sucesso no Teatro das Bandeiras, assim como tomar parte, nos primórdios da TV Tupi, de programas ao vivo, pois ainda não existiam gravações em vídeo-tape. Tudo aquilo era uma grande novidade para quatro jovens recém-chegados do sul do país, onde a TV ainda não tinha sido inaugurada. Para coroar nossa estreia no palco e frente às câmeras da televisão fomos agraciados com os prêmios “Os Melhores da Semana” na categoria de espetáculo para adultos e também “‘Os Menores da Semana”, na de programas infantis.

Depois dessa estada vitoriosa em São Paulo tivemos a oportunidade de nos apresentar, dessa feita como profissionais remunerados, nos primeiros tempos da TV Piratini, de Porto Alegre. O Teatro Infantil de Marionetes passou a fazer parte da grade normal de programação infantil da emissora gaúcha onde, além de manipularmos os bonecos, era preciso redigir e ensaiar um espetáculo novo a cada semana, o que obrigou a incansável e criativa Dona Odila a produzir dezenas de novos personagens, que serviram para ampliar o repertório e abrir novas oportunidades para o mais antigo teatro de bonecos do Brasil.

Tive de me despedir do grupo quando troquei o Rio Grande do Sul pelo Rio de Janeiro, mas conservo na memória as emoções e os semblantes de satisfação das plateias infantis e adultas que assistiam, encantadas, seus espetáculos.

Marionetes e fantoches tem o poder mágico de se comunicar, de forma instantânea e natural, com o público, o que explica o sucesso que os desenhos animados continuam desfrutando até os dias de hoje.

O TIM organizou e participou de festivais de teatro de bonecos no Brasil e no exterior. Seu fundador, Antonio Carlos Sena, filho da saudosa Dona Odila, é o pai do Cacá Sena, freguês de caderno deste Blog e uma referência nesse ramo das artes cênicas. Que, além de marionetes, fantoches e outros bonecos de diferentes formas, dimensões e técnicas de manipulação, vem produzindo espetáculos teatrais premiados de elevado nível de sofisticação em várias capitais do Brasil.

Passada a pandemia e reabertos os teatros, se o leitor deste Blog tiver a oportunidade de assistir a um espetáculo de bonecos criado ou dirigido por Cacá Sena, recomendo que o faça, pois não irá se arrepender.

Foto: Teatro Infantil de Marionetes (TIM)

5 thoughts on “Azenha

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  • Bernardo Falk

    Nelson, Big-Brother, esta crônica, fala comigo, já que:
    1) Nasci e me tornei adolescente neste Bairro.
    2) Estudei dos 6 aos 10 anos (1o ao 5o ano primário)no G. E. Duque de Caxias)
    3) Conheci seus pais e sua Irmã Susana.
    4) Lembro que sua viagem a SP foi devido ao 5o Centenário da Cidade, salvo engano?

    Resposta
  • Bernardo Falk

    Nelson, Big-Brother, esta crônica, fala comigo, já que:
    1) Nasci e me tornei adolescente neste Bairro.
    2) Estudei dos 6 aos 10 anos (1o ao 5o ano primário)no G. E. Duque de Caxias)
    3) Conheci seus pais e sua Irmã Susana.
    4) Lembro que sua viagem a SP foi devido ao 5o Centenário da Cidade, salvo engano?

    Detectado comentário repetido; parece que você já disse isso!

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  • Nelson Menda

    Oi, Bernardo. Você acertou em 99%, pois nossa viagem a São Paulo ocorreu em 1954, nas comemorações do Quarto Centenário daquela cidade. Quando nos mudamos para a Azenha Dona Marieta decidiu me matricular no Colégio Farroupilha, instalado em um prédio muito antigo na Alberto Bins. Era preciso pegar quatro bondes da Carris, dois na ida e outros dois na volta, para ir e vir da Azenha ao colégio. Meus amigos da Azenha frequentavam o Cruzeiro do Sul, que adoravam. Eu já não posso dizer o mesmo.

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