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Primeiros anos

Por Nelson Menda

Meus primeiros anos no Rio foram dedicados, basicamente, à Residência em Traumato-Ortopedia, pelas manhãs, e a trabalhar, à tarde, nos postos de atendimento da Perícia Médica. Além, é claro, de procurar fazer novos amigos e conhecer a cidade.

O Rio apresenta uma topografia bastante peculiar, alternando, no seu entorno, uma cadeia de elevadas montanhas que se espraiam em direção a um litoral bastante recortado, o que lhe propicia uma paisagem deslumbrante. Desde sua fundação os distintos governantes trataram de melhorar a natureza, através do desmonte de alguns morros de localização inconveniente e do aproveitamento da terra para realizar distintos aterros, como o da Urca, por exemplo. Posso afirmar que foram bem sucedidos na maioria das vezes, pois conseguiram melhorar o que já era exageradamente bonito.

A população pensante, tanto a nativa quanto a adotiva, sempre gostou de acompanhar o planejamento e a execução das sucessivas obras que visavam embelezá-la e agilizar a circulação dos veículos. População essa que não titubeou em apoiar o desmonte daquelas consideradas de mau gosto, como o feioso Elevado da Perimetral, que bloqueava a vista para o mar e acabou inteiramente demolido.

Para um recém-chegado ao Rio era preciso conhecer seus meandros, seus túneis, suas rotas preferenciais e, obviamente, as respectivas alternativas para evitar os recorrentes congestionamentos. Como estava lotado na Perícia Médica do então INPS, que antecedeu ao INSS, poderia tanto atuar em algum posto quanto realizar atendimentos periciais domiciliares a pacientes com dificuldades de locomoção.

A maioria dos colegas da Perícia Médica não tinha interesse em realizar essas visitas domiciliares, apesar da remuneração ser superior aos atendimentos prestados nos postos, porque esse trabalho implicava em utilizar o próprio carro e exigir deslocamentos pelos diferentes e distantes bairros da cidade. Era tudo o que eu precisava para saciar minha curiosidade em conhecer a megalópole, seus bairros e distintas peculiaridades, como os intrincados ramais ferroviários da Central do Brasil e da Leopoldina. O mais difícil seria descobrir os atalhos que permitissem circular entre uma artéria da Central e outra da Leopoldina, pois não existiam muitas passagens subterrâneas e viadutos interligando esses distintos trajetos.

Na era pré-GPS a única alternativa seria utilizar o Guia Rex, um livreto que listava todos os logradouros da cidade e vinha acompanhado por um enorme mapa dobrável. Praticamente todos os taxistas do Rio utilizavam esse guia, pois mesmo os mais experientes necessitavam de uma orientação para encontrar certos logradouros menos conhecidos, assim como as ruas e avenidas com denominações que se prestavam a confusões, como a Bulhões de Carvalho e a Dr. Bulhões, a Sá Ferreira e a Francisco Sá, para citar dois exemplos. A Bulhões de Carvalho, por sinal, acabou sendo batizada, por algum carioca jocoso, de Rua Quase-Quase, pela verossimilhança com duas palavras de duplo sentido. Com o passar do tempo esse apelido acabou prevalecendo sobre a denominação oficial.

O Guia Rex foi de enorme utilidade nesses primeiros tempos de Rio de Janeiro. Na realidade, acabei descobrindo a existência de quatro cidades distintas ocupando o espaço físico. A melhor – e mais disputada – delas era a Zona Sul, com suas maravilhosas praias e prédios icônicos, como o suntuoso Copacabana Palace e o recém-concluído Aterro do Flamengo, entre tantos outros. Além da Zona Sul, tínhamos os bairros da Zona Norte, com destaque para a Tijuca, um pouco mais distante da praia e considerada um reduto preferencial da classe média. Também tínhamos os subúrbios, servidos pelos dois ramais ferroviários mencionados e onde residiam as famílias de menor poder aquisitivo. Afora esses locais, podíamos contar com as cidades da Baixada Fluminense, também acessíveis por trens e ônibus.

É preciso mencionar a presença, desde quando cheguei ao Rio, das favelas, bem menos numerosas e violentas do que as existentes nos tempos correntes. Vale destacar as da Rocinha, Pavão e Pavãozinho, Vidigal, Salgueiro e Mangueira, as mais populosas e conhecidas. Com exceção do Pavão e Pavãozinho as demais albergavam operários e trabalhadores domésticos que preferiam residir próximo dos seus locais de trabalho, evitar o tempo dispendido nesses deslocamentos e as despesas com aluguéis. É importante ressaltar que algumas favelas da Zona Sul, naquela ocasião, começaram a ser removidas para dar lugar a parques e áreas residenciais.

Foi o caso da Favela da Catacumba, na Lagoa, transformada em uma região de recuperação da mata atlântica e um espaço de extremo bom gosto para a exibição de esculturas ao ar livre. Uma outra grande favela, montada sobre palafitas na Lagoa Rodrigo de Freitas, ao lado do sofisticado Clube Caiçaras, sofreu um providencial e até hoje pouco explicado incêndio e seus valorizados terrenos acabaram sendo ocupados por inúmeros prédios residenciais.

O Rio tinha deixado de ser a capital do país assim que me instalei por lá, mas ainda conservava o glamour dos bons tempos. Os grandes hospitais dos antigos institutos de aposentadoria e pensões, como o dos Servidores do Estado, Bancários, Comerciários e de outras categorias profissionais ainda mantinham suas gigantescas estruturas físicas e funcionais. Seria apenas uma questão de tempo para que o poder político, que estava se transferindo, pouco a pouco, para Brasília, acabasse com os tempos de glória da Cidade Maravilhosa. A pá de cal no esvaziamento do Rio foi a transferência, a duras penas, das representações diplomáticas estrangeiras. Brasília não tinha o charme do Rio e acredito que não tenha conseguido conquistar, até o presente momento, o encanto da antiga capital.

Mas eu estava me lixando para a perda da importância política da cidade que tinha escolhido para viver. Sabia que teria um período difícil pela frente até que chegasse o tempo de poder usufruir as benesses propiciadas por uma das cidades mais bonitas do mundo. Apesar de ter conseguido adquirir um apartamento em uma área privilegiada pela beleza natural e a poucos metros da praia, só pude começar a curtir as coisas boas que Ipanema tinha a oferecer aos seus moradores praticamente alguns anos depois da chegada ao Rio. Mas estava disposto a enfrentar o sacrifício, pois tinha a plena certeza de que, ao final, seria recompensado, o que, de fato, levou algum tempo e acabou acontecendo.

Até ser contratado para um emprego em um hospital público de bom padrão tive de gramar em ambulatórios da Perícia Médica, uma atividade considerada de menor importância, especialmente para um profissional recém formado interessado em exercer a especialidade de traumato-ortopedia. Queria atender pacientes preocupados com seus problemas reais de saúde e não ter de bancar o detetive para poder separar o joio do trigo, ou seja, identificar quem estava, de fato, precisando entrar em benefício daqueles aproveitadores que visavam faturar uma graninha extra simulando alguma enfermidade.

Atuei em ambulatórios em que médico algum gostaria de estar lotado, com destaque para o Posto do Quitungo, na divisa entre o então Estado da Guanabara, que delimitava a fronteira entre as áreas agradáveis e desagradáveis do Rio. Uma vez destacado para algum posto da Perícia Médica da periferia teria de trabalhar por vinte ou trinta anos até chegar à idade da aposentadoria. A realidade é que nenhum médico, em sã consciência, aceitaria permutar uma vaga em um hospital ou ambulatório melhor localizado por uma outra na periferia.

Como já assegurei, o Rio não era uma cidade com um comportamento uniforme. Quem residisse na Zona Sul pensava, agia e falava de forma distinta da de um morador da Zona Norte, do Subúrbio ou da Baixada Fluminense. Essa divisão não era apenas econômica, pois muitos moradores da Tijuca e dos subúrbios tinham uma condição financeira superior aos de Copacabana, para citar um exemplo, e em pouco tempo percebi que existiam diferenças perceptíveis na maneira de pensar, de agir, de vestir e até de falar entre os moradores dessas distintas áreas.

Marinheiro de primeira viagem não tem escolha e tive de aceitar os empregos que me foram oferecidos. Era pegar ou largar, pois em muito pouco tempo as oportunidades foram minguando, pelo próprio esvaziamento do Rio, que perdia importância e postos de trabalho a olhos vistos para a nova capital. Por sorte, fui salvo pelo gongo por mais de uma vez. Na primeira, porque ocorreu uma mudança no sistema de concessão de benefícios para os Acidentados do Trabalho, que migrou das companhias seguradoras privadas para a Previdência Social. A perícia que, até então, não aceitava especialistas, passou a necessitar de ortopedistas, justamente a especialidade que eu tinha escolhido para exercer. Fui transferido para um posto no Centro do Rio, bem melhor do que as bibocas da periferia onde tinha trabalhado até então.

O Centro do Rio era – e continua a ser – um lugar bastante bonito e em apenas 20 ou 30 minutos de carro eu estaria na Ipanema dos meus sonhos. Só faltava, agora, conseguir me transferir do Posto de Perícias Médicas da Estrada do Quitungo, um lugar de onde nenhum médico tinha conseguido sair. O segundo milagre aconteceu com a promulgação do malfadado AI-5, um Ato Institucional que, entre outras idiossincrasias, proibia a contratação e demissão de funcionários públicos federais. Com o passar do tempo e os antigos servidores se aposentando, não havia como preencher essas vagas. Coisas estranhas que só aconteciam em Pindorama, como aliás, continuam a ocorrer até os tempos atuais.

Deduzi com meus botões. Ora, se ninguém pode ser mandado embora, tenho de aprontar alguma quizumba com a coordenadora burocrática do Posto, uma senhora que não regulava muito bem do juízo. Comentava-se, à boca pequena, que ela tinha sido muito bonita quando mais jovem, antes de pirar de vez. Desse tempo teria restado uma antiga ligação romântica com alguém da Coordenadoria Médica da Perícia, daí o fato de ninguém se atrever a retirá-la da chefia. Qualquer outro lugar seria melhor do que aquele ambiente distante e desagradável. Essa megera tinha suas recaídas cíclicas, passando parte do seu tempo internada em um hospital psiquiátrico e o restante dedicado a atazanar o juízo dos infelizes funcionários e médicos lotados naquele malfadado posto. Eu fazia residência médica no turno da manhã no Hospital Pedro Ernesto, em Vila Isabel. Tinha de sair ao meio-dia, enfrentar quarenta sinais de trânsito da congestionada Av. Brasil para chegar ao Posto de Perícias Médicas do Quitungo e assumir minha posição no turno das 11 às 15 horas. Obviamente, isso era humanamente impossível, e como o trabalho na Perícia não envolvia emergências, pois os atendimentos eram marcados com bastante antecedência, bastaria mudar meu turno de 4 horas, teoricamente das 11 às 15h, para o seguinte, ou seja, das 15 às 19h. E permitir que eu realizasse os atendimentos a partir das 13h. Com essa medida eu não precisaria dirigir loucamente pela Av. Brasil nem abrir mão do almoço. Solicitei à coordenadora, educadamente, que passasse a marcar meus atendimentos a partir das 13h, pois em duas horas eu daria conta do recado. Não adiantou e fiquei sabendo pelos colegas e demais funcionários do posto que ela começava a urrar às 11h e só parava quando eu chegasse, obviamente atrasado, para atender os pacientes.

Essa situação perdurou até o amaldiçoado – ou abençoado, no meu caso – dia em que o Ato Institucional número 5 foi assinado. Por essa medida discricionária, nenhum funcionário público federal poderia ser admitido ou demitido durante sua vigência. Era tudo o que eu necessitava para poder cair fora daquele verdadeiro inferno. Esperei que a megera tivesse um de seus recorrentes ataques de fúria e dirigi-lhe a palavra, na frente dos demais funcionários, com a frase previamente ensaiada: “Quero que a Sra. vá tomar no olho do seu c….”. Foi tiro e queda e nem precisei aguardar o próximo plantão para receber a grata notícia de ter sido transferido do Posto de Perícias Médicas do Quitungo para a Coordenação Estadual, no Centro da Cidade. Ou seja, tudo o que eu queria. Reconheço que foi uma atitude corajosa e, até certo ponto, arriscada. Foi uma decisão que, se não tivesse dado certo, é provável que eu tivesse de continuar lotado naquele posto até completar o tempo para requerer a aposentadoria, sei lá por quantos anos.

Não poderia encerrar este relato sem comentar um fato bastante estranho ocorrido naquele local. Em um determinado dia, ao realizar um atendimento de um jovem, perguntei-lhe, como fazia rotineiramente, como ele estava se sentindo. Ele não respondeu, dando a entender que não poderia abrir a boca. Pediu uma caneta e uma folha de papel, onde escreveu “Não posso abrir a boca”. Por que? Indaguei. “Se eu abrir, ela entra”. Ela quem? Insisti. E o rapaz voltou a escrever: “A Pomba Gira”. Não sabia, até então, do que se tratava e levei o bilhete para o chefe médico esclarecer. Ele arregalou os olhos e esclareceu: “Concede o benefício e não deixe o segurado abrir a boca, pelo amor de Deus”. Foi o que fiz, recomendei ao jovem que mantivesse a boca fechada e prorroguei seu benefício por mais alguns meses, como o chefe tinha recomendado. Depois, fiquei sabendo que a Pomba Gira era uma entidade espiritual do mal que, quando contrariada, saía batendo e quebrando tudo o que encontrasse pela frente. Eu tinha uma certa vivência com manifestações espiritualistas da Umbanda e da Quimbanda no Rio Grande do Sul, meu estado natal, mas Pomba Gira, para mim, era uma completa novidade. Tempos depois, já lotado na Coordenação Estadual de Perícias Médicas, no Centro do Rio, tomei conhecimento de um quebra-quebra ocorrido no Posto do Quitungo, por parte de um segurado que, ao abrir a boca, deixou que aquela entidade maligna escapasse e saísse destruindo tudo que estivesse ao seu alcance. Não sei se o posto precisou ser reconstruído, mas aprendi que não vale a pena contrariar certas crendices populares. Assim como, acreditem ou não, que com a Pomba Gira e determinadas entidades do mal não se pode – nem deve – brincar.

Depois de alguns anos e muitas amizades conheci a futura mãe das minhas filhas e comecei a procurar uma Sinagoga para oficiar a cerimônia religiosa do nosso casamento. Foi muito difícil conseguir falar com o Rabino Lemle, da ARI, mas isso já é assunto para um próximo Blog.

Foto: Rodrigo Soldon (Flickr)

3 thoughts on “Primeiros anos

  • Ester Menda

    Com estes percorridos minuciosos, onde podes organizar tua história, não vais precisar de psicanálise.

    Muito bons.
    Abraço primo

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  • Carlos

    Muito legal. Pode sair um livro só deste período tão bom e saudoso do Rio de Janeiro.

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  • Nelson Menda

    Agradeço os comentários, forma de me sentir conectado aos leitores do Blog. Uma pena que o Rio de Janeiro dos meus sonhos permaneça vivo apenas na minha memória. Sempre existe a esperança de que os bons tempos da Cidade Maravilhosa possam, algum dia, retornar.

    Resposta

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