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Reencontros & desencontros

Por Nelson Menda

O reencontro de parte do ramo materno da minha família, em Cachoeira do Sul, depois de toda a epopeia descrita no capítulo anterior, acabou coincidindo com um triste episódio. Uma das irmãs do meu avô, de nome Augusta, por quem ele nutria enorme carinho, ficou gravemente enferma. Suspeitava-se de gangrena em um dos membros inferiores, que deveria ser amputado para que sua vida pudesse ser salva.

Vou relatar a história que escutei um sem número de vezes da minha mãe, pois eu ainda não tinha vindo ao mundo naquela ocasião. Augusta era mãe de um casal de filhos pequenos, na faixa dos oito anos, e precisava de cuidados médicos de urgência somente acessíveis em Porto Alegre. Como o trem de passageiros entre Cachoeira e a capital gaúcha não estivesse disponível, o recurso foi embarcá-la, às pressas, em uma composição destinada ao transporte de cargas. A tentativa foi infrutífera e Augusta acabou falecendo, para tristeza do esposo, de seus dois filhos menores e do próprio irmão.

Como faço parte de uma geração acostumada a escutar repetidos relatos de acontecimentos familiares, cheguei a perder a conta do número de vezes em que minha mãe relatou esse trágico episódio. A tal ponto que ele passou a se constituir em uma parte integrante da minha própria memória, sem que eu tivesse vivenciado essa triste experiência.

Até agora me detive em relatar o que aconteceu com um segmento do ramo materno da minha família, que migrou no início do século 19 da Moldávia para o Rio Grande do Sul, com passagens pela França, Inglaterra e Argentina, sem mencionar os demais fluxos migratórios que se dirigiram para o Sul do Brasil.

Parte da região norte do Rio Grande do Sul, há duzentos anos, era revestida por uma densa cobertura vegetal, com destaque para os imponentes pinheiros nativos, que além da madeira forneciam uma preciosa iguaria bastante apreciada nas frias noites do inverno gaúcho, os pinhões. Os pinheirais compartilhavam o espaço com uma outra espécie vegetal, a Hevea brasiliensis, de cujas folhas se produzia a erva-mate, componente obrigatório do chimarrão, indispensável no dia-a-dia de seus habitantes.

Aos povos autóctones dessa região, muitos dos quais descendentes das antigas missões jesuíticas, vieram se agregar os colonizadores portugueses do continente e do Arquipélago dos Açores. O governo do estado tinha interesse em ocupar os espaços ainda vazios do território gaúcho com imigrantes, especialmente aqueles provenientes de países com tradição agrícola. Chegou a veicular anúncios na mídia europeia, oferecendo terras a custo simbólico a quem se dispusesse a cultivá-las. Não eram as melhores, obviamente, que já tinham sido ocupadas há bastante tempo.

A campanha surtiu efeito e começaram a migrar para o estado colonos provenientes da Alemanha, Itália, Polônia e até mesmo da Rússia. A Jewish Colonization Association, popularmente conhecida como ICA, tomou a decisão de adquirir grandes áreas rurais em duas regiões distintas do Rio Grande do Sul: Phillipson, nas proximidades de Santa Maria e Erechim, no norte do estado.

A primeira dessas colônias, cuja denominação presta homenagem a um dos três barões judeus que tiveram a iniciativa de retirar seus irmãos de países assumidamente antissemitas da Europa, foi criada em 1904. O projeto previa a divisão da terra em lotes, destinando-os a famílias inscritas, que receberam, além do terreno, uma casinha simples de madeira, uma junta de bois, sementes e utensílios agrícolas. Os contemplados deveriam permanecer no lote por um período mínimo de dez anos para quitar sua dívida com a empresa incorporadora.

Esqueceram, todavia, de dois importantes detalhes. O primeiro é que as terras destinadas ao projeto, na região de Itaara, não eram apropriadas nem para agricultura e muito menos para a pecuária. Eram pedregosas e a aquisição dessa propriedade deve ter sido um baita erro de planejamento ou pura má fé por parte dos funcionários encarregados de sua aquisição. O segundo – e não menos importante – é que os colonos judeus não tinham tradição agrícola, pois eram proibidos de ser proprietários de terras na quase totalidade dos países europeus em que viviam. Trocando em miúdos, era um projeto que tinha tudo para dar errado como, aliás, aconteceu.

A segunda iniciativa da ICA, na região de Quatro Irmãos, próximo à cidade de Erechim, quase fronteira com Santa Catarina, encontrou uma realidade diametralmente oposta. Possuía uma extensa cobertura vegetal, à base de frondosos pinheiros nativos da espécie Araucaria augustifolia e terras bastante férteis.

Pois foi em Erechim, Erebango e outras localidades vizinhas que uma parte dos imigrantes acabou se radicando e os Peissahk, recém-chegados ao Rio Grande do Sul, acabaram se ligando por laços de parentesco e amizade aos descendentes dos colonos judeus dessa região.

Por essa época, meu avô materno, Alberto Peissahk, que rapidamente conseguiu incorporar o português ao leque de idiomas que já dominava, descobriu um nicho de negócios nos próprios vagões de passageiros da Viação Férrea do Rio Grande do Sul em que viajava. Envergando um uniforme de marinheiro inglês, com um embornal às costas, apregoava aos viajantes das composições que sacolejavam nas idas e vindas pelos campos e coxilhas do estado cortes da afamada casimira inglesa, que comercializava entre os passageiros.

A moda da época exigia que os homens dispusessem de pelo menos uma “fatiota”, como os ternos eram denominados, para vestir nas cerimônias e atos solenes, como noivados, casamentos e até mesmo enterros. Dominando o inglês, francês, ídiche e já arranhando as primeiras palavras em português, meu avô não teve a menor dificuldade em se relacionar com os passageiros dos trens puxados por resfolegantes locomotivas, popularmente conhecidas como “maria-fumaça”.

As viagens eram demoradas, as composições precisavam se reabastecer, de tempos em tempos, com lenha, carvão e água, o que ensejava o estabelecimento de longos papos entre os passageiros. É fácil deduzir o que representava encontrar naquelas paragens um europeu poliglota que tinha residido nas duas cidades mais cultas e sofisticadas da Europa: Paris e Londres. E que, ainda por cima, ostentava um vistoso anel da maçonaria em um dos dedos. Aquele símbolo mágico servia para entabular proveitosos diálogos e abrir as portas desse novo e, até então, desconhecido mundo.

Alberto Peissahk, em muito pouco tempo, além de fazer seu pé de meia com a venda dos cortes de casimira, estabeleceu um sólido círculo de amizades com as elites das principais cidades do interior do Rio Grande do Sul. Além disso, com o ídiche, podia se comunicar com membros da coletividade esquenazi espalhados pelos distintos e distantes rincões do interior do estado. Santa Maria, Dom Pedrito, Alegrete, Pelotas, Rio Grande, Uruguaiana, Cruz Alta, Passo Fundo, Rio Pardo, Bagé e muitos outros por onde as composições da Viação Férrea cruzassem se transformaram em pontos de apoio para o comunicativo Alberto Peissahk.

As colônias agrícolas de Phillipson e Quatro Irmãos, além disso, tiveram o mérito de forjar um time de empreendedores judeus que acabaram lançando a pedra fundamental de vitoriosos segmentos da economia que são destaques até os dias de hoje nos campos da cultura, ciência, comunicações, hotelaria, reflorestamento e muitos outros.

Espalhados pelo vasto território gaúcho, essa primeira geração de judeus nascidos no estado almejava para seus filhos e filhas o sonho de acabar se fixando na cidade que lhes parecia ideal: Porto Alegre, a capital do estado. Foi para lá que meu avô materno, assim que conseguiu reunir um pequeno capital, fruto da venda de cortes e mais cortes de casimira, decidiu se transferir. Deixou a pequena Cachoeira do Sul, com a esposa e três filhas quase adolescentes, para realizar o almejado sonho de voltar a residir em uma cidade grande. Não tão grande quanto Paris e Londres, mas que já dispunha de uma eficiente rede de transportes públicos, à base de bondes, de serviços de telefonia, gás encanado, água e esgoto, ruas calçadas, boas escolas, cinemas e teatros. Sem mencionar uma outra grande vantagem, como a relativa proximidade com duas das principais metrópoles da América do Sul, Montevidéu e Buenos Aires. Além disso, Porto Alegre poderia oferecer às suas filhas educação de alto nível, em escolas públicas de reconhecida qualidade.

O Rio Grande do Sul se constituía em um celeiro de importantes lideranças políticas e militares, entre outras razões por sua tradição de liderança e privilegiada posição geográfica. Alberto Peissahk era um apreciador de antiguidades e gostava de colecionar selos e moedas raras, chegando a possuir cobiçados “olhos de boi”, bastante valorizados pelos filatelistas. Dominando o inglês e o francês, podia se corresponder com colecionadores de diferentes países e decidiu abrir uma loja, a primeira do gênero na capital gaúcha, onde poderia comercializar antiguidades, sua paixão.

Com esse objetivo, decidiu contratar um profissional para organizar a parte contábil do estabelecimento e chamou um jovem contador conhecido por sua seriedade e competência. Seu nome: Alberto Menda, natural da Turquia, que tinha migrado ainda jovem com seus pais e cinco irmãos para Porto Alegre, onde se graduou em Contabilidade e Economia.

Assim que o recém admitido contador entrou na loja dos futuros sogros, teve a atenção despertada para a filha do meio dos proprietários, uma jovem morena bastante comunicativa, na flor dos seus 16 anos. Foi amor à primeira vista, mas logo surgiriam alguns empecilhos para os planos matrimoniais dos enamorados. Em primeiro lugar, os pais da moça só autorizariam o casamento quando ela completasse 17 anos. O segundo problema parecia bem mais sério. Apesar de não muito observantes, os pais da noiva faziam questão de casá-la segundo os preceitos do judaísmo.

Até então os Peissahk não suspeitavam que o contador e candidato a genro também fosse judeu. Esclarecido esse fato, desandaram a falar em ídiche. O pretendente dominava o português, turco, espanhol, inglês e francês, mas não entendia ídiche, pois era sefaradi. Que coisa estranha, um judeu que não falava nem entendia ídiche. Aquilo precisava ser verificado e só haveria uma maneira de fazê-lo. Uma visita ao bar popularmente conhecido como “Shtink” (fedor, em tradução livre para o português), no Bom-Fim, bairro judaico da capital gaúcha onde os esquenazis se reuniam para confraternizar e fofocar, obviamente em ídiche. Por sorte, um dos frequentadores do estabelecimento, que sabia das coisas, esclareceu a questão, sem o que eu não teria vindo ao mundo.

Era preciso aguardar que a mocinha completasse 17 anos para que o casamento fosse realizado, obviamente em uma Sinagoga Sefaradi, na Cidade Baixa, onde os “turcos” residiam. O Bom Fim era o reduto para aquele povo esquisito que não falava nem entendia ladino. Com hábitos alimentares distintos, esse casamento representou um dos primeiros enlaces matrimoniais entre essas duas coletividades. Minha mãe teve de aprender, às pressas e escondida da futura sogra, a preparar tapadas, fritadas, agristadas e outros quitutes, com o auxílio secreto de Dona Zimbul, para que o casamento não fosse por água abaixo. Pitoresco é que, entre as iguarias das culinárias sefaradi e esquenazi, o que acabou prevalecendo, com o tempo, foi o brasileiríssimo feijão com arroz, bife e batatas fritas, para o bem de todos e felicidade geral da família.

Vou concluir esse relato com um episódio pitoresco. Meu avô materno, com a vida já estabilizada, decidiu adquirir um carro, um fulgurante Ford de bigode. Para se exibir, convidou as senhoras da melhor sociedade judaica porto-alegrense para um tour pela cidade. Postou-se ao volante, deu a partida no motor e saíram todos, na maior felicidade, a rodar com aquela raridade, pois Porto Alegre possuía muito poucos automóveis. Ele tinha tomado algumas aulas de direção, sabia ligar o motor de arranque e dar a partida, mas não tinha a menor noção de como desligar e parar o veículo. Comenta-se que o desolado grupo ficou rodando por muitas horas, aos gritos, até que acabasse a gasolina, tarde da noite. As senhoras, já meio desesperadas, puderam desembarcar e jurar que, passeio como aquele, nunca mais.

Meus avós maternos faleceram muito cedo e ainda consigo recordar algumas poucas passagens de suas vidas quando eu deveria estar com cinco ou seis anos. Herdei, juntamente com minhas irmãs, algumas de suas antiguidades, com destaque para a bengala de empunhadura prateada, que faço questão de manter exposta na entrada da casa, como símbolo de sua marcante presença. Coincidência ou não, um dos meus netos, curioso em seus sete anos, adora brincar com o objeto quando vem me visitar. Talvez esteja se preparando, sem se dar conta, para suceder o avô do vovô, como sou carinhosamente chamado em família.

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