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Sefaradis

Por Nelson Menda

Sou descendente, por parte de pai, de uma família sefaradi de raízes espanholas proveniente da Turquia. Mais precisamente, de Lule Burgás, uma pequena cidade da Trácia, na Turquia Europeia, próximo das fronteiras da Grécia e Bulgária.

Exatamente por estar localizada em um território disputado por três países, a região vivia em permanente estado de tensão. Em função dessa situação de beligerância era comum que as famílias dispusessem de um estoque estratégico de três distintas bandeiras, que deveriam ser hasteadas, just-in-case, na frente de suas residências, para se precaver dos saques, estupros e assassinatos por parte dos exército vencedor de ocasião. Havia um acordo tácito para que as famílias judias que habitavam esses países deveriam ser poupadas, por serem consideradas dhimmis, palavra turca para designar as minorias protegidas pelos Sultões. Tão logo os combates tivessem cessado – e antes que os saques e atos de violência tivessem início – era imperioso que os chefes das famílias judias se postassem na frente de suas casas e passassem a apregoar, aos gritos, a palavra salvadora: Yaudí, Yahudí (Judeu, Judeu). Funcionava como uma espécie de salvo conduto para avisar que a soldadesca não deveria tocar em nenhum fio de cabelo de seus moradores, sob o risco de ter de prestar contas aos janízaros, os aguerridos combatentes do exército otomano, hábeis no manejo de suas afiadas cimitarras.

Além do turco, a língua falada pelos judeus de origem ibérica era o ladino, uma mescla entre o português e o espanhol entremeada de expressões em hebraico. Nem todos os sefaradis, todavia, possuíam origem ibérica, pois muitos judeus da Síria, Líbano, Egito, Iraque, Líbia, Marrocos, Tunísia e outros países do Norte da África não se comunicavam em ladino, mas em árabe, também mesclado com palavras do hebraico, que utilizavam para se comunicar no interior de seus lares e sinagogas.

No caso dos judeus do Marrocos, coexistiam no país dois grupos distintos, denominados megorashim e toshavim. Parte de sua população, proveniente da Israel dos tempos bíblicos, se comunicava em árabe e hebraico. Outra parte, originária da Espanha e Portugal após as expulsões de 1492/97, utilizava a haquetía, composta por palavras do espanhol e do árabe.

Pode-se dizer que os sefaradis, via de regra, dominavam três idiomas: o dos países onde viviam, o dos países de onde tinham sido expulsos ou conseguiram sair por livre e espontânea vontade e o da prática religiosa, nas sinagogas. Muitos sefaradis provenientes da Tunísia e do Egito, além do árabe, se comunicavam em francês.

Mesmo os que não possuíam ancestralidade ibérica como, por exemplo, os iemenitas, eram considerados sefaradis, pela fidelidade ao rito oriental. Isso porque sefaradi que se preza não admite modificar uma vírgula na tradição litúrgica, ao contrário de alguns segmentos esquenazis que, com raras exceções, se subdividiram em ortodoxos, liberais, reformistas e progressivos. Daí o rabinato ter optado pelo hebraico falado pelos sefaradis quando da fundação do moderno Estado de Israel.

Quando se ingressa em uma sinagoga pela primeira vez, é fácil constatar tratar-se, ou não, de um templo sefaradi, pela posição da bimá, púlpito em que o oficiante dirige a cerimônia religiosa. Nos templos sefaradis ele deve estar voltado para o Aron Akodesh, o armário onde ficam guardados os rolos da Torá, que compõem o Antigo Testamento.

Calcula-se, a grosso modo, que a população de Israel seja constituída por 50% de sefaradis e 50% de esquenazis. É importante mencionar que a expressão sefaradi deriva do termo Sefarad, denominação histórica da Península Ibérica, cujo território era constituído, majoritariamente, por Espanha e Portugal.

Mesmo com o passar do tempo e inúmeros deslocamentos, pode-se afirmar que os sefaradis possuem algumas características comuns, que os diferenciam das coletividades judaicas provenientes da Europa, como as dos esquenazis. Minha mãe, por exemplo, não tinha origem sefaradi, pois descendia de uma família judaica originária da Moldávia, também chamada de Bessarábia, que já foi um protetorado russo e otomano no passado.

Quando meus ancestrais paternos chegaram ao Brasil, na década de 20 do século passado e se estabeleceram em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, se fixaram na Cidade Baixa, próximo ao Centro e não muito distante do Palácio do Governo. É fácil entender a razão dessa escolha. Simplesmente porque os sefaradis, tradicionalmente, sempre estiveram próximos ao poder. Não que fizessem parte do poder em países de maioria cristã ou muçulmana, mas eram chamados a administrar os diferentes reinos e sultanatos onde viveram, por sua reconhecida capacidade gerencial. Foi assim na Espanha e Portugal no período que antecedeu as expulsões de 1492 e 1497, com D. Isaac Abravanel, cuja família possui ramificações no Brasil até os dias de hoje.

Além de sua reconhecida capacidade administrativa, muitos sefaradis se notabilizaram no campo das ciências em geral e da medicina em particular. Na Turquia anterior à chegada dos judeus expulsos da Península Ibérica a medicina era exercida por membros da família Hamon, com destaque para o Dr. Moses Hamon, que viveu entre 1490 e 1554 e tinha sido médico de confiança do Sultão Suleiman, o Magnífico. Além de médico, Hamon era conselheiro particular do soberano para assuntos políticos, tendo exercido influência no acolhimento dos judeus expulsos da Espanha e Portugal. Já o Sultão Bayazid II, ao vislumbrar, do Palácio Topkapi, em Istambul, a chegada de milhares de refugiados judeus em numerosas embarcações, pronunciou a frase que se tornaria emblemática daquele momento: “O Rei Fernando, referindo-se a Fernando de Aragão, está empobrecendo seu reino e enriquecendo o meu”.

O mais paradoxal, no triste episódio da expulsão dos judeus da Espanha, é que a união entre Castela e Aragão tenha sido uma iniciativa dos Rabinos-Chefes dos dois reinos, respectivamente Isaac Abravanel e Abrão Señeor. Ele promoveram a apresentação entre D. Fernando de Aragão e Isabel de Castela, através de um casamento arranjado. Planejavam unificar os dois reinos e, com a força de seus exércitos, expulsar os remanescentes da dominação islâmica no sul da Espanha.

Só não contavam com a presença de um fanático entre os confessores de Isabel, Torquemada, um padre que sonhava com uma Espanha livre de “infiéis”, como ele denominava judeus e mouros. Assim, logo após a unificação dos reinos, convenceu os soberanos a expulsar os judeus, no malfadado Édito de Expulsão assinado em 5 de dezembro de 1496. Concedeu 90 dias, posteriormente prorrogado por iguais períodos, para que todos os judeus saíssem do reino ou se convertessem ao cristianismo, sob a ameaça de exterminar os que insistissem em permanecer fiéis à religião mosaica. Por sorte, meus ancestrais paternos conseguiram sair da Espanha e, ao que tudo indica, atravessar o território português, praticamente com a roupa do corpo, até chegar, sabe-se Deus como, à cidade de Salônica, à época pertencendo ao Império Otomano.

Os judeus que permaneceram na Espanha e Portugal e decidiram continuar praticando a religião em segredo pagaram um preço muito caro pela ousadia. Vieram a constituir os chamados Cristãos Novos, que povoaram uma parte do Brasil, “descoberto”, poucos anos depois, pelos portugueses.

Os que conseguiram se exilar na Turquia, como os Menda, viveram com tranquilidade pelos próximos 434 anos. Podiam ser donos de seus negócios, suas casas e frequentar sinagogas. Todavia, estavam proibidos de andar a cavalo, prerrogativa dos turcos étnicos, nem utilizar uns exóticos chapéus pontiagudos. Pagavam um imposto ao governo, na qualidade de dhimmis, minoria protegida pelos sultões e podiam fazer negócios nos amplos domínios do Império Otomano, que ia do Norte da África, passando pela Península Arábica e chegando às proximidades de Viena, na Áustria.

Sei, pela história oral contada e recontada um sem número de vezes pelos meus ancestrais paternos, que os Menda eram comerciantes estabelecidos com lojas em Lule Burgás até o ano de 1926, quando decidiram migrar para o Brasil. Uma característica marcante dos sefaradis turcos e gregos era a alegria de viver. Tudo era motivo para se achar graça e os encontros familiares, onde eram degustadas deliciosas burrecas, era o espaço para relatar fatos alegres do presente e do passado. Um dos irmãos de meu avô paterno já residia em Porto Alegre e sugeriu a vinda de parte da família.

O Império Otomano, que sucedeu ao Romano em extensão e poder, estava em plena decadência. A Turquia, naquele período, tinha se envolvido – e perdido – várias guerras, com pesadas baixas e uma crise econômica sem perspectiva de solução. Por outro lado, o Brasil era “O País do Futuro”, na antevisão poética de Stefan Zweig.

Quando minha família paterna decidiu migrar para o Brasil, a Turquia estava saindo de uma fase de fundamentalismo religioso para ingressar, graças ao empenho de Kemal Pachá, também conhecido como Ataturk, na modernidade. Militar de reconhecida capacidade estratégica e considerado um herói por seus conterrâneos, Ataturk, quando assumiu o poder, tomou várias medidas visando adaptar seu país aos novos tempos. Iniciou pela separação entre o estado e a religião muçulmana. Instituiu a igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres. Elas, até então, não podiam estudar nem trabalhar fora e estavam relegadas à condição de esposas dóceis e subservientes aos desejos dos maridos. Substituiu o idioma árabe pelo turco nos documentos oficiais e instituiu a indumentária ocidental no lugar dos arcaicos e pouco práticos trajes tradicionais, em que os homens se vestiam com uma espécie de camisolão. Isso tudo nos primórdios do século passado, quando se sabe que até os dias atuais muitos países com população muçulmana, como Irã, Arábia Saudita e Afeganistão, para mencionar alguns exemplos, ainda se baseiam na Sharia, o fundamentalismo islâmico.

Um irmão do meu avô paterno, de nome Leon Menda, havia feito fortuna em Cuba nos primórdios do século passado. Ao regressar à Turquia, abriu três lojas em sociedade com meu avô em Lule Burgás. Os dois irmãos decidiram, de comum acordo, se desfazer dessas três lojas e seguir seus próprios rumos. Tio Leon, como era chamado em família, empregou sua parte na aquisição de uma loja no Grand Bazar de Istambul, que cheguei a conhecer alguns anos depois quando visitei a Turquia. David Menda, meu avô, decidiu migrar para o Brasil com a esposa e os seis filhos, o mais velho dos quais, meu pai, tinha usufruído de uma boa escolaridade na Turquia.

Meu pai conseguiu se graduar ao chegar a Porto Alegre e exerceu, com sucesso, a atividade de contador. Casou, teve quatro filhos – sou o segundo e único varão – mas teve a infelicidade de falecer antes de poder usufruir as benesses do patrimônio que conseguiu amealhar, com muito sacrifício, por esforço próprio. Mas deixou um exemplo de honradez e operosidade que procuro não só manter como transmitir aos meus descendentes e também ao círculo de fiéis amigos e amigas que fui amealhando no decorrer da vida.

Foto: Cymelo, CC BY-SA 4.0 (Wikimedia Commons). Sinagoga Sefardi, localizada no mesmo edifício da sinagoga de Trieste.

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