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A chave e o Bar Mitzvá

Por Marcos L Susskind

Não é nada incomum que uma família judaica prepare o Bar Mitzvá de seu filho. Mas neste Bar Mitzvá algo saiu do controle…

A mãe pensou em tudo – o salão foi contratado muitos meses antes da cerimônia, o convite desenhado pelo famoso Van Der Kapoires, o “papa” do design gráfico. As roupas das mulheres – a mãe do jovem e suas duas irmãs – feitas por Chez Memorable, com contrato escrito de não repetir os modelos e nem sequer o tecido por 48 meses. A decoração do salão – claro – por Fantastique Fleurs, com tulipas holandesas e orquídeas em tons do azul marinho ao azul celeste. A orquestra, com 26 músicos, coro e três solistas contratada para tocar – sem interrupção – por pelo menos seis horas.

O gerente do salão de festas sabia que nada podia dar errado – marcou duas degustações com críticos culinários antes de apresentar o menu à Família Schepnarkovitch. Madame Lupariewa foi contratada para ensinar os passos da valsa de abertura e ensaiou não só o jovem e sua mãe, mas também o pai com cada uma das duas irmãs e as variações possíveis – jovem com cada irmã, pai com a mãe. Nada daria errado.

Ah, claro, há de se contratar um professor de Bar Mitzvá. Aqui ocorre o primeiro – e único – embate – o preço! Como pode custar tanto? Afinal são só algumas aulas particulares. O professor de matemática cobra muito menos, o de português então…

“É por isso que professor de Bar Mitzvá tem carro e não anda de ônibus”, diz o pai.

Passa-se também por isso e começa o roteiro. Aulas de brachot, de leitura na Torá, de Haftará e repete-se o ciclo. Aparece uma viagem para Ilhas Virgens e suspendem-se as aulas. Aparece um fim de semana esticado em Angra dos Reis e nova suspensão de aulas. Aparece um cruzeiro pela Antártida e … e, nada. Tem prova de vestido, o cruzeiro que espere por outra oportunidade. O pai vai anotando as despesas enquanto a mãe cada vez cria uma nova – seria super legal trazer o conjunto Roladinho para um show no intervalo – o Johny adora! E aumentam-se despesas…

Mas o inesperado aconteceu. Johny achou uma chave que abria uma caixa de madrepérola que ficava guardada ao lado do cofre. A curiosidade de um menino de doze anos é conhecida. O que estaria nesta caixa trancada? Joias? Fotos proibidas? Dinheiro? Mapa de algum tesouro?

Johny excitou-se e decidiu que na primeira oportunidade, quando pai e mãe estivessem ausentes, ele iria saber. E o dia não tardou. Exatamente no dia em que os pais foram ao bufê para a degustação, Johny Schepnarkovitch colocou a chave na caixa, quase suando girou e a abriu. Surpresa! Não tinha nenhum mapa de tesouro e nem joias, não tinha fotos “proibidas para menores” nem dólares ou euros. Havia só algumas folhas amareladas, escritas a mão, algo que pareceria uma carta e nada mais.

Johny pegou a carta, enfiou dentro do livro de rezas que usava para as aulas de Bar Mitzvá, trancou a caixa, colocou a chave onde a tinha encontrado e, tal como um raio, saiu em direção ao clube. Hoje tinha aula de natação antes da aula de Bar Mitzvá. A imensa curiosidade da pré-adolescência prevaleceu e Johny “matou” a aula de natação. Preferiu subir para a biblioteca e lá, numa mesa individual, tentar descobrir o motivo da caixa conter apenas uma carta guardada como um tesouro.

A surpresa foi imensa. A carta, escrita num português cheio de erros, era endereçada a alguém que Johny jamais imaginaria. A carta era endereça a ele mesmo, a Johny. E dizia o seguinte, com todos os seus erros de português mas com todos os acertos de judaísmo:

“ Meu Querido Ierachmiel:

Estoy voltando de seu Brit Milá. Você recebeu o nome de meu querido pai, Ierachmiel, que foi assassinado pelos nazistas. Infelizmente seus pais decidiram que Ierachmiel só vai ser usado quando você subir na Torá ou quando assinar o documento de casamento. Ele preferem Johny. Nu, zol zayn azoy. Mas dentro da minha corazon, você vai sempre ser Ierachmiel.

Eu reza para D’us te dar grande futuro. Eu pede para ele te dar saúde e te fazer crescer feliz. Você, Rachmu (era assim que chamavam meu pai), é o futuro do nosso povo e você é a melhor prova que os nazistas no conseguiu acabar com nós.

Eu acha que você num vai nunca vê este carta. Mas pode ser, talvez ela aparece um dia no teu frente e eu quero te dizer algumas coisas importantes para mim e que – talvez – seja menos importante para teus pais.

Rachmu querido, nós tem uma história. Nós tem um tradiçom que nós precisa guardar. Um dia, meu querido, você vai fazer Bar Mitzve. Neste país todo mundo se preocupa muito com o festa, com as roupas, com a comida, com a decoraçom e com a música. Tudo isto é importante – mas non é o principal, querido Rachmu.

Eu espera que você, quando tiver 13 anos, entende que a continuaçon do povo judeu non está nestas coisas, mas sim na manutençon das tradiçons, no entidimento do que ser de verdade ser judeu, do conhecimento das nossas fontes, da nossa história, da nossa família e do nosso povo esparramado no mundo.

Rachmu, meu anjo: faiz muitos anos que teu Zeyde non vai em Bar Mitzve. Eu no quero ir na festa de despedida do judaísmo. Bar Mitzve tem de ser entrada no judaismo, inicio de pertencer, de participar. Mas muitos fazem festa de interrupçon, que só volta na casamento.

Eu non sei se eu vai estar vivo quando você chegar aos 13 anos, por isso escreve este carta que talvez você nunca non vai ler. Mas tenho um um pequeno esperanza que sim.

Do teu Zeyde que te ama,

Scholem Zalman”

A carta tocou fundo em Johny. Ele queria correr imediatamente ao Lar, onde mora hoje seu avô – mas como poderia um menino, de 12 anos, fazê-lo? Veio uma ideia. Ligou para a mãe pedindo que o buscasse. Estava com uma tremenda dor de barriga.

Assim que a mãe chegou, Johny disse que não tinha dor de barriga nenhuma, mas que precisava ver o Zeyde já – e deixou claro: “sem perguntas”. A mãe tentou saber algo, mas Johny só queria o Zeyde, o Lar, rápido.

Ao se encontrarem, Johny não conseguiu falar. Abraçava e chorava, chorava e abraçava. Mãe e Zeyde, enfermeiras e demais velhinhos olhavam e não entendiam. Johny pediu para subir com o avô até seu quarto, sem ninguém mais.

Lá chegando, desabou novamente em choro e só conseguiu dizer:

“Zeyde, você vai vir a uma festa de entrada no Judaísmo – e vai ser linda”. Tirou a carta amarelada de dentro de sua sacola, entregou ao avô e juntos, abraçados, derramaram mais algumas lágrimas…

Foto: Funkmania (Flickr)

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