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Sinal dos tempos

Por Nelson Menda

Já passei, há muito tempo, daquela fase mística da vida em que acreditava em todas as histórias e crendices que me eram relatadas. Aprendi a respeitar as crenças alheias, independente da vertente, se judaica, católica, evangélica, muçulmana ou agnóstica. Reconheço o direito das pessoas em acreditar ou desacreditar de qualquer fé em que confiam, assim como o de possuir mais de uma religião, de poder substituí-la sempre que necessário ou, pura e simplesmente, de não acreditar em nada.

Não me considero ateu, pois prefiro a expressão agnóstico no que se refere a esse delicado tema. Posso estar equivocado, mas no meu entendimento ateu seria aquele que nega a existência de um ser superior, ao passo que o agnóstico poderia ser representado, graficamente, por um ponto de interrogação, ou seja, uma pessoa que não acredita nem desacredita, apenas não quer arriscar um palpite.

Uma das minhas tias do ramo paterno, que sempre conheci com um sorriso maroto nos lábios e uma tirada espirituosa, está prestes a completar um século de existência. Há alguns anos, quando ela residia no bairro da Azenha, em Porto Alegre, fui visitá-la e me surpreendi com a parafernália de objetos místicos em sua residência. Havia uma estrela de David, ao lado de crucifixos e imagens de santos e santas da Igreja Católica, assim como uma do Padre Reus, milagreiro venerado, que eu saiba, somente no Rio Grande do Sul. Tia Luna, indaguei à queima-roupa, afinal em quem tu acreditas? Em todos, ela respondeu, pois nunca se sabe de qual deles se vai precisar quando chegar a hora. Que hora? Poderia ser a hora da onça beber água ou do juízo final, como os tempos estão querendo nos convencer a aceitar.

Nunca fui chegado a estudos bíblicos, mas parece que os tais tempos anunciados pelos profetas estão mais próximos do que se poderia supor. Secas, enchentes, incêndios florestais e essa pandemia, tudo ao mesmo tempo, até parece que estamos, mesmo, nos aproximando da época do julgamento divino.

Dentre as diferentes seitas evangélicas, sempre senti uma certa curiosidade a respeito de uma que se intitula “dos Santos dos Últimos Dias” Será que já estamos próximos desses últimos dias? Se prestarmos a atenção, sempre existirão sinais favoráveis e desfavoráveis à chegada dos tais tempos anunciados por aqueles que garantem pressentir essa ocasião.

Acho mais prudente manter um pé atrás, para que não volte a acontecer a mortandade ocorrida no ano 1.000, que os oráculos previam ser o fim dos tempos. Morreu muita gente, só que de fome, pois ninguém plantou um simples pé de couve no período que antecedeu o fatídico ano. É provável que algum descrente mais antenado tenha se dado bem ao ignorar essa profecia fajuta e garantido seus estoques de alimentos, tanto para uso próprio quanto a comercialização.

As histórias se repetem de forma cíclica, apesar de algumas figuras públicas, especialmente em um país que já foi conhecido pelo nome de Pindorama, fazer questão de ignorá-las. Assim, toca a poluir os rios, a devastar as matas nativas, a ignorar as questões do meio ambiente e coisas do gênero. Parece que estamos chegando ao tempo da cobrança, em que as chuvas que deveriam cair não caíram, pegando os reservatórios estratégicos vazios. Aí só restam os racionamentos, a ativação de termelétricas onerosas e poluidoras e outras medidas paliativas que deveriam ter sido providenciadas há mais tempo. Nessas horas apelam-se para simpatias, rezas e procissões, sem nos darmos conta de que, graças aos avanços da ciência, todos esses acontecimentos seriam perfeitamente previsíveis.

Como judeu, sempre pertenci a uma minoria religiosa, especialmente enquanto vivia no Brasil. Durante a minha infância e adolescência, o catolicismo era a religião predominante. Existiam protestantes, mas em proporções muito menores. O Presidente da República deveria ser, obrigatoriamente, alguém que professasse a religião católica apostólica romana. Até a hora em que, durante o último período de exceção, assumiu o poder um general protestante e ninguém ousou contestar. Os espiritualistas praticavam sua doutrina sem ser incomodados, mas os livros de Allan Kardec e Chico Xavier continuavam proibidos em Portugal, precisando ser contrabandeados para chegar às mãos dos leitores daquele país.

Lembro de uma manifestação odiosa de preconceito religioso, que poderia fazer lembrar os Autos de Fé da Inquisição. Foi anunciada, em Porto Alegre, a chegada de um pregador católico que iria pronunciar conferências sobre um terrível perigo que se avizinhava no horizonte: o Espiritismo. Tratava-se de Frei Boaventura, especializado no combate às heresias. Foi reservado, para ele, o amplo espaço do Largo da Prefeitura, no Centro da Cidade, onde instalaram uma parafernália eletrônica, para que suas palavras alcançassem o maior número possível de ouvintes. Além do serviço de alto-falantes a pregação foi transmitida em cadeia radiofônica e lembro de tê-la escutado na casa dos meus pais.

Meu primeiro e melhor amigo de infância pertencia a uma família espírita e ele relatou que a presença desse Frei em Porto Alegre provocou um clima de muita ansiedade em sua casa. A troco de que um pregador poderia utilizar espaços públicos para atiçar a população contra um determinado grupo religioso? O Brasil não era um país laico? A liberdade religiosa não era garantida pela própria constituição? Felizmente esse Frei não deu mais as caras no Brasil, que eu saiba, mas ficou evidente que a população queria se libertar do jugo religioso em que era mantida. O que mudou, em termos de Brasil, nas últimas décadas, foi a ascensão do protestantismo pentecostal, que está empatando, ou quase, com a tradicional igreja católica.

A chegada da Covid-19 representou um divisor de águas entre as pessoas que acreditam no progresso e procuraram se imunizar com uma das muitas vacinas desenvolvidas, a toque de caixa, pelos homens e mulheres da ciência. Conheço uma brasileira negacionista que se recusava a tomar a vacina até que as oportunidades de trabalho foram minguando, uma a uma. Foi uma das últimas pessoas do meu círculo de relacionamento a receber a vacina, mas é preciso, agora, esperar que seu organismo elabore os anticorpos que irão formar a barreira protetora e, além disso, aguardar mais algum tempo para tomar a segunda dose, sem contar com as novas variantes. O pitoresco é que ela sempre conclui suas frases com a expressão “Se Deus Quiser”. Sem que ela perceba, retruco mentalmente com a resposta que me parece lógica: “E se Deus não quiser”? Ainda bem que ela não consegue ler meu pensamento, para que não entrássemos em uma estéril e desnecessária discussão. Foi-se o tempo em que eu perdia tempo discutindo assuntos que não podem ser comprovados ou negados pela ciência.

Voltando ao negacionismo, como ele se comporta como uma verdadeira síndrome, não basta aceitar ou negar a eficácia da vacina, pois ao lado da questão sanitária existe o fator político, em que as santidades tradicionais passaram a ser substituídas por outras entidades menos prosaicas. Esse movimento anti-vacina no Brasil não é novo, pois basta recordar o que aconteceu com o cientista Oswaldo Cruz, em 1904, ao procurar combater a Varíola. Foi hostilizado pelo populacho, que julgava indecorosa a exposição dos braços das senhoras e donzelas para receber a picada da agulha. O governo quase foi derrubado por uma revolta popular, que contou com o apoio de políticos de fala fácil e cabeças vazias e também dos cadetes do exército, que saíram de seus quartéis, na Praia Vermelha, e marcharam bradando lemas patrióticos, para gáudio da massa ignara. A situação estava ficando insustentável e o Presidente Rodrigues Alves achou prudente interromper a campanha antes que o país entrasse em uma guerra civil. A vacinação precisou ser suspensa. Vitória do negacionismo? Nada disso. O que aconteceu no ano seguinte foi o recrudescimento daquela virose, com mais mortes e gente com o rosto coberto por feias cicatrizes.

A história, quando se repete, o faz em forma de tragédia. O Oregon, onde resido, conta com um eficiente sistema de saúde e há vacina para todos os que desejam recebê-la, mas o negacionismo fez escola por aqui. Não tanto quanto nos estados do Sul, onde Donald Trump foi vaiado ao falar a favor da imunização, relatar ter recebido sua dose e ter recomendado que outros sigam seu exemplo. Está colhendo o que plantou. Os hospitais de Portland estão com os leitos de UTI ocupados por negacionistas que fizeram questão de não se vacinar. Além de pegar a Covid, estão transmitindo a virose para outras pessoas. Sinal de que a ignorância não tem limites e de que parte da humanidade demora a aprender com quem está a razão. Isso quando consegue.

Nessas questões espinhosas procuro me alinhar com a máxima do meu patrício Jesus de Nazaré: ”Perdoai-os, Senhor, pois eles não sabem o que fazem”.

Fonte: Autor desconhecido, Domínio Público (Wikimedia Commons). Bonde virado durante a Revolta da Vacina.

5 thoughts on “Sinal dos tempos

  • Angela Neves

    Oi, Nelson!
    Fiquei curiosa em saber quem é essa “quase negacionista” sua amiga. O que vejo por aqui é todo o mundo querendo vacinas e o Governo não ter o suficiente para atender a demanda. Assim que chegam nos postos de saúde a turma sai correndo para tomar. Cuidado com a mídia que você anda acompanhando. 🙂 Pelo que sei, aí nos USA é que tem boa parte da população que não quer, apesar da fartura de vacinas oferecidas. Vai entender… 🙂
    Bj. e, como sempre, ótimo artigo!

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  • DAVID N MENDA

    Oi Ângela. Essa brasileira é quem fazia a faxina na minha casa e na da Fernanda. A Fernanda foi quem decidiu que , sem vacina, ela não retornasse. Diz ela que já fez a primeira dose, mas vai ter de comprovar exibindo o atestado de imunização. Ela é casada com um americano negacionista, que também é contra as vacinas, tanto que diz ter feito a aplicação sem que ele soubesse.

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  • Debora Rocha

    Uma das minhas cunhadas alemã também é uma que se nega a tomar a vacina,pois não acredita “ que tudo que dizem a respeito da covid seja verdade “.
    Mas aqui como empregador você não pode exigir do empregado que ele seja vacinado, ainda, mas acredito que isso irá mudar com o número crescente de doentes e o surgimento de novas variantes.

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  • Nelson Menda

    Oi, Dedé. Não brigue com sua cunhada. Trate de convencê-la com argumentos lógicos. Procure explicar que muitas enfermidades sérias, como a Varíola e a Poliomielite, foram erradicadas com a utilização de vacinas. A diferença é que a Covid é mais recente e alguns políticos aproveitaram para angariar votos junto aos segmentos menos esclarecidos das populações. Por fim, explique para ela que, além da exposição à enfermidade, ela está ajudando a disseminação dessa virose. Se não funcionar, afastem-se dela, para não correr riscos. A Covid já causou muito sofrimento a todos nós antes do desenvolvimento das vacinas. Agora que elas existem não faz o menor sentido se negar a tomá-las. A brasileira negacionista que trabalhava para mim e a Fernanda já perdeu, até agora, essas duas oportunidades de atuação profissional. Na realidade, o problema da sua cunhada e de outras pessoas tem nome: ignorância!! Bjs

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  • Fernanda

    Muito bem escrito. Como sempre.

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