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Variações térmicas

Por Nelson Menda

Recebi email de um amigo de infância de Porto Alegre relatando que estava fazendo um frio de renguear cusco. Nada como um gauchês autêntico para ativar a memória.

Enquanto ele reclamava do frio, tivemos de suportar, aqui em Portland, um dos dias mais quentes do planeta. Felizmente meu apartamento é um dos que dispõe de ar condicionado central, apesar dos antigos proprietários, um casal meio estranho, ter fechado todas as grelhas de saída do ar. Minhas filhas se deram conta dessa maluquice e reabriram parte dessas saídas, deixando fechada apenas a do meu quarto. No meio da noite, como estava muito, mas muito quente e abafado, tentei abri-la, mas como ela está posicionada na parte alta da parede seria arriscado, aos 78 anos e em plena madrugada, utilizar uma escadinha para tentar alcançá-la.

Fui salvo pelo meu avô materno, o zeide, Abraham Peissahk, natural da Bessarábia, atual Moldávia. Ele era um colecionador de tudo que pudesse ser colecionável, como selos, moedas, bengalas, objetos de arte, antiguidades e o que mais lhe desse na telha. Chegou a abrir um antiquário, o primeiro de Porto Alegre, na Cristóvão Colombo, mas não conseguiu ficar rico porque botava os fregueses para correr quando entrava alguém interessado em adquirir alguma de suas preciosidades. Dentre suas múltiplas coleções se destacava a de bengalas antigas, das quais herdei uma, que faço questão de conservar e levar comigo nas mil e uma mudanças que já fiz nessa vida. Foi quem me salvou de morrer torrado no calor, pois consegui utilizar a extremidade superior da bengala e, com ela, alcançar a alavanca que abria a tal grelha que permitia a saída do ar.

Citando um professor do Colégio Farroupilha, que a toda hora mencionava um provérbio nordestino de que desgraça pouca é bobagem, pois uma desgraça nunca vem só, a companhia de eletricidade do Oregon cortou a energia justamente no meio da noite do dia mais quente dos últimos cem anos. O ar condicionado parou de funcionar mas, por sorte, o apartamento ainda estava fresquinho e, com auxílio de uma providencial lanterna-lampião, pude concluir minhas tarefas, entre as quais a de encomendar, pelo celular, o rancho para o dia seguinte.

Felizmente a onda de calor se deslocou para o norte e o frio, que sempre detestei, voltou a reinar. Acabei chegando à conclusão de que a calefação é bem menos desagradável e barulhenta do que a refrigeração.

Mas quem está vivendo seu inferno astral não são os moradores da Costa Oeste, onde fica Portland, mas os residentes de Miami Beach, na extremidade oposta do país. Estou me referindo aos sobreviventes do desmoronamento da Champlain Tower, prédio em que só não adquiri um apartamento por não dispor de recursos quando tive vontade de morar naquele local considerado, até então, privilegiado.

Fui salvo pelo gongo, pois a escritura de venda do apartamento em que morei em Bay Harbor Islands foi assinada por procuração no dia exato em que parte da Champlain Tower veio abaixo. É provável que os imóveis de Miami Beach, com destaque para aqueles localizados em áreas instáveis, acabem sofrendo algum tipo de desvalorização.

Uma das poucas famílias que conseguiu sair, milagrosamente, com vida, dos escombros, constituída por mãe e filho, eram amigos da minha filha e meu neto mais velho. Foram encaminhados para um hospital, mas a mãe não resistiu aos ferimentos e faleceu. As autoridades prometem investigar as causas do desmoronamento, que me fizeram lembrar o que aconteceu com o Palace II, no Rio. Deve acabar em pizza, pois Miami e o Rio são muito parecidos, especialmente no que se refere às maracutaias.

Enquanto as equipes de socorro continuam revirando os escombros, na tentativa de encontrar sobreviventes do que restou daquele elegante edifício, já teve início o festival de acusações a respeito dos responsáveis pela falta de manutenção do mesmo. Dentre elas a nebulosa história de um laudo pericial de 2018 que alertava os condôminos para uma falha estrutural em uma laje, que estaria impedindo a drenagem das águas do subsolo.

O prédio era habitado por latinos, inclusive brasileiros, argentinos, venezuelanos e muitas famílias judias. Sua localização era perfeita, pois ficava ao lado de um amplo parque à beira mar, o Haulover, frequentado por banhistas de todos os estilos e feitios, desde senhoras ortodoxas cobertas da cabeça aos pés até mesmo nudistas, claro que cada grupo em seu respectivo quadrado, assim como cães. Isso mesmo, cães, pois a praia permitia que seus donos levassem seus totós para um saudável banho de mar, geralmente pela manhã.

Quando andava à procura de um lugar para residir em Miami Beach, estava dividido, acreditem, entre esse prédio que desabou e um outro, em Bay Harbor Islands, ao lado do Indian Creek Channel, outro local muito bonito. Só não adquiri um apartamento no Champlain Tower porque faltou gelt, pois a vontade de residir naquele prédio era muito grande. Há uma expressiva comunidade israelita em Surfside, como é denominado esse trecho da praia, que os americanos classificam como cidade.

Nessa área existem nada menos de quatro importantes sinagogas. O destaque entre elas é o Shul, instalado em um imponente prédio revestido por pedras de cor amarelada trazidas de Israel. As famílias religiosas, que não dirigem automóveis em respeito ao Shabat, optaram por residir em Surfside pela possibilidade de se deslocarem, a pé, de suas residências até um desses quatro templos israelitas. A forte presença judaica na região pode ser aferida pela existência, além das sinagogas, de nada menos de 15 restaurantes kosher.

Assim que a notícia do desabamento foi difundida, o Rabino Lipskar, do Chabad, que dirige o Shul com extrema dedicação e competência, colocou sua comunidade à disposição dos sobreviventes e suas famílias, coletando alimentos e agasalhos para os moradores da Champlain Towers.

Um pequeno grupo de brasileiros conseguiu se salvar porque acordou com o ruído, no meio da noite, desceu rapidamente as escadas, encontrou um apartamento aberto e, sem vacilar, pulou, da sacada, direto para a piscina, antes que o edifício viesse abaixo.

Já teve início o jogo de empurra para encontrar os possíveis culpados pelo desastre. Em 2018, durante uma inspeção de rotina, engenheiros de uma empresa especializada em perícias apontaram falhas no sistema de drenagem do subsolo, que poderiam afetar a segurança do prédio. O orçamento para reparar o problema apontou para despesas entre 9 e 15 milhões de dólares, a serem rateadas entre os proprietários. Parece que a chiadeira foi geral, o que obrigou a Presidente do Board, como os Síndicos são chamados por aqui, a pedir demissão, juntamente com o restante da Diretoria, em 2019. Não se sabe ao certo, mas parece que acabaram encontrando um outro perito que assegurou que nada precisaria ser feito, pois o prédio, segundo ele, era seguro.

Assim, em plena madrugada do dia 24 de junho, ouviu-se um forte estrondo seguido pelo desmoronamento, qual um castelo de cartas, de 12 andares do Bloco Sul do prédio, sepultando os moradores que não tiveram tempo de fugir. Algumas pessoas estão tentando atribuir o acidente à construção de um imenso e luxuoso prédio no terreno ao lado. Outras, à elevação do nível do mar, pois Miami e Miami Beach nada mais são do que um imenso banco de coral revestido por uma tênue cobertura de terra e uma luxuriante vegetação. São questões que levarão algum tempo para ser respondidas, se é que serão algum dia.

Foto: Miami-Dade Fire Rescue (Twitter)

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