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The American Dream

Por Nelson Menda

O relato bíblico da multiplicação dos pães vem sendo transmitido geração após geração, tendo chegado à minha própria no seu devido tempo. Quando meus avós paternos e maternos migraram, respectivamente, da Turquia e Bessarábia, para o Brasil, nos anos vinte do século passado, julgaram, erroneamente, ter aportado à América, como eles denominavam os Estados Unidos.

Do ponto de vista geográfico estavam corretos, sem se dar conta de que havia um abismo cultural e econômico entre o Norte e o Sul do gigantesco continente americano. Como meus ancestrais se estabeleceram no extremo sul do Brasil, onde havia, à época, pleno emprego e uma fartura alimentar de fazer inveja aos demais países, até podiam, na sua santa ingenuidade, crer que tinham chegado, mesmo, à América. Contribuiu para esse entendimento a enorme presença de políticos gaúchos na vida nacional, com destaque para Getúlio Vargas e seus familiares, entre eles seu sobrinho, Ernesto Dornelles, que foi Governador do Rio Grande do Sul e cujo filho foi meu colega de turma no curso primário.

Essa proximidade com o poder propiciava a sensação de que vivíamos em um país generoso e solidário. Durante minha infância não existia miséria perceptível a olho nu no Rio Grande do Sul. Existiam pobres, mas não miseráveis. Não se via ninguém dormindo nas ruas nem crianças pedindo esmolas. Ser gaúcho enchia a todos de justificado orgulho.

Me surpreendi, na primeira vez em que viajei para outras regiões do país, com a quantidade de crianças pequenas nas ruas pedindo esmolas. Algumas chegavam a solicitar dólares, julgando que eu fosse gringo. Mas por que dólares, indaguei, se sou brasileiro? É que o senhor fala essa língua diferente, referindo-se ao meu sotaque gaúcho.

Gente, como o Brasil mudou – e para pior – nessas últimas décadas. Já faz alguns anos que não vou a Porto Alegre, onde nasci e vivi até concluir o curso superior, mas lembro da recomendação de evitar o centro da cidade após o sol se pôr, na última vez em que estive por lá. E olhe que não faz assim tanto tempo. Tenho a plena consciência de que o crime, uma vez estabelecido como algo natural em uma determinada localidade, cria raízes profundas, como uma erva daninha.

Vim para os Estados Unidos seguindo os passos de minhas filhas e não me arrependo. Não gostaria de transformar este texto em um festival de queixas e lamúrias, pois reconheço que, em alguns aspectos, o Brasil é bastante superior às oportunidades proporcionadas aos norte-americanos. O ideal é poder usufruir as coisas positivas desses dois países, como algumas pessoas já estão fazendo – e se dando bem.

Comecemos pelos investimentos imobiliários, onde consegui, por pura sorte, multiplicar um pequeno capital até me transformar em, digamos, assim, uma pessoa financeiramente estabilizada. Tudo dentro da lei, pagando as taxas e os impostos devidos nesses dois países. Durante os governos Itamar Franco e Fernando Henrique, após a criação do Plano Real, o dólar e o real ficaram equiparados. Naquele período, 1 dólar passou a valer 1 real. Nessa ocasião, por uma feliz coincidência, os imóveis no Brasil tiveram uma alta. Decidi vender uma das minhas propriedades, pois já tinha decidido migrar para os Estados Unidos, atrás das filhas. Na mesmíssima ocasião estourou uma bolha imobiliária nos States e os preços dos imóveis caíram praticamente à metade da noite para o dia. Não somente eu, mas grande parte dos brasileiros que queriam adquirir uma propriedade nos Estados Unidos puderam comprar casas e apartamentos em condições bastante favoráveis.

Assim, consegui adquirir meu primeiro imóvel, em um prédio tradicional da Collins, uma espécie de Avenida Atlântica de Miami Beach. Verdade seja dita, o apartamento estava “detonado”, como afirmam os cariocas, pois tinha sido alugado durante vários anos para uma família que, além de não cuidar do imóvel, tinha o hábito de acender velas para os santos dentro da cozinha. Além do mau cheiro reinante, uma mistura nauseabunda da gordura dos alimentos fritos com o sebo das velas derretidas, o apartamento só dispunha de uma única lâmpada para iluminá-lo, o que, provavelmente, afastou outros potenciais compradores. Fui salvo pela corretora, uma senhora extremamente educada, que chamou minha atenção para a excelente localização do edifício e do amplo apartamento em que eu estava interessado. Fiz uma oferta, que foi aceita pelo proprietário na hora, e passei os próximos meses, sabão e esponja nas mãos, limpando o fogão, a geladeira e as próprias paredes da cozinha, impregnados com as manchas e o mau cheiro da gordura acumulada durante anos.

Diferente do que acontece Brasil, quando se adquire ou aluga um imóvel nos Estados Unidos ele já vem equipado com os acessórios da cozinha, além do próprio ar-condicionado, competindo ao proprietário arcar com os custos da aquisição e manutenção desses equipamentos. Ao invés de precisar contar com um fiador ou um seguro fiança o locatário deve efetuar um depósito correspondente a três meses do valor do aluguel, que serão devolvidos ao final da locação. Na Flórida, até alguns anos, era muito difícil encontrar apartamentos para adquirir ou alugar com mais de dois quartos. Existia a suposição de que as famílias interessadas em imóveis maiores deveriam adquirir casas – e não apartamentos. Com a progressiva chegada de brasileiros, parece que as construtoras decidiram oferecer ao mercado apartamento de sala e três quartos, mais ao gosto dos nossos conterrâneos.

Mutatis mutandi, caro leitor, depois de alguns anos residindo nos Estados Unidos e tendo adquirido, com o passar do tempo, outros imóveis, acabei chegando à conclusão de que, nos States, vale muito mais a pena ser locatário do que locador. Bem ao contrário do Brasil, onde as despesas de condomínio, IPTU e impostos são cobradas ao locatário caso o imóvel esteja alugado.

Essa é uma, dentre tantas outras, diferenças básicas entre o que ocorre em um e outro país. Confesso que levei vários anos para me familiarizar com determinados aspectos da vida norte-americana, especialmente no que concerne à moradia. Entender a diferença entre um Apartment e um Condo foi outra dificuldade. Apartment poderia ser entendido, erroneamente, como um apartamento. No Brasil, usamos essa palavra para diferenciá-lo de uma casa, mas aqui nos Estados Unidos apartment se refere a um imóvel destinado exclusivamente à locação. Já condo – e em determinados estados – significa, para nós, brasileiros, um apartamento.

Para concluir e tentar desfazer mais uma situação que se presta à confusão é preciso explicar a diferença entre um Condo e uma Coop. Condo, como acabei de relatar, é um apartamento, que pode ser comprado, vendido ou alugado. Já Coop é uma história um pouco mais complicada. Enquanto em Nova Iorque, por exemplo, condos e coops disputam o mercado imobiliário em condições de paridade, aqui no Oregon, onde resido, só existe uma coop em todo o estado. Diferente do mercado imobiliário brasileiro, onde podemos comprar uma propriedade à vista ou financiada, aqui nos Estados Unidos é comum pegar um empréstimo bancário na hora de adquirir um imóvel. Em primeiro lugar porque os juros, comparado ao que ocorre no Brasil, são muito, mas muito, baixos. Em grande parte das vezes o comprador precisa dispor de 20% para a entrada e financiar o restante do preço a longo – ou muito longo – prazo. Todavia, se o comprador estiver interessado em adquirir uma Coop deverá dispor de capital próprio, pois os bancos só emprestam dinheiro para a aquisição de Condos. Moral da história: os imóveis construídos e administrados pelo sistema Coop, além de mais baratos são mais demorados para vender, pois o candidato à aquisição, além de dispor do valor total da transação, deverá ser sabatinado pelos demais moradores para saber se terá condições financeiras de arcar com os custos destinados à manutenção do prédio. Isso aconteceu comigo quando me mudei de Miami Beach para Portland, em plena Pandemia, pois tive de provar que teria condições financeiras de arcar com o pagamento das quotas mensais destinadas à manutenção do edifício. Como eu tinha acabado de vender as propriedades de Miami Beach, estava capitalizado e pude provar aos demais proprietários que poderia assumir não só o pagamento do imóvel em que tencionava residir, o que de fato ocorreu, como também com as despesas de manutenção do edifício.

Acabei adquirindo um amplo e confortável apartamento, com uma deslumbrante vista para a um bosque de pinheiros nativos, por um quinto do que custaria se não fosse uma Coop, mas um Condo. Baruch Ha’Shém, – Graças a Deus em Hebraico – fui bafejado pela sorte mais uma vez.

Gostaria de aproveitar esta oportunidade para registrar minha sincera opinião a respeito do que me parecem ser os mais vantajosos investimentos financeiros para quem, como eu, não domina o enigmático terreno das ações, debêntures, bitcoins e outros produtos do gênero. Na minha modesta opinião só se ganha algum dinheiro, quando se ganha, investindo naquilo que se conhece. E, modéstia à parte, depois de alguns passos equivocados acabei aprendendo a comprar e vender imóveis, talvez até pela convivência com meu pai Z”l. Uma outra lição é que os “milagres” não costumam se repetir. Dólar a um real é coisa do passado, assim como o estouro da bolha imobiliária americana. Já aconteceu uma vez e não deve voltar a ocorrer. É provável que estejam surgindo outras oportunidades neste exato momento. O pulo do gato é saber quando e onde estão ocorrendo, para poder aproveitá-las. É preciso ficar atento, acompanhar a evolução do mercado onde se pretende investir e ter a coragem de tomar decisões, de correr riscos, de estar preparado tanto para ganhar quanto perder.

Nunca gostei nem tive paciência para acompanhar o sobe-desce das ações, mas conheço gente que ganhou – e outras que perderam – dinheiro aplicando na Bolsa de Valores. Aplicar em ações não é tarefa para amadores, mas para quem conhece, estuda e acompanha esse mercado atentamente. Como afirmam os cariocas, não é a minha praia. Quanto aos imóveis, seus preços têm subido de forma exponencial nos últimos meses aqui nos Estados Unidos, especialmente na Flórida. Será que vão continuar subindo?

Conversando com um grande amigo brasileiro antenado nesse mercado, fiquei com a impressão de que está prestes a ocorrer um sério abalo, pelo jeito para muito em breve. Depois do trágico desmoronamento daquele prédio na Collins, as seguradoras iniciaram um levantamento para saber quais os edifícios de Miami realizam obras de manutenção recomendadas e quais os que deveriam tê-las realizado e deixaram de fazê-lo. Essa relação acaba de ser divulgada, enumerando todos os prédios residenciais de habitação coletiva da Grande Miami que fizeram as manutenções devidas e tiveram suas contas aprovadas pelas autoridades imobiliárias. Os que deveriam ter feito e não realizaram estão impedidos de contratar empréstimos junto aos agentes financeiros na hora de vender suas unidades. Sem a possibilidade de financiamento, o mercado imobiliário deverá encolher, pois os adquirentes, aqui nos Estados Unidos, estão acostumados a comprar suas casas e apartamentos valendo-se de empréstimos bancários. Segundo esse meu amigo, espera-se, para breve, uma redução lenta e progressiva no preço dos imóveis na área de Miami, especialmente naqueles prédios que não realizaram a manutenção adequada em suas estruturas e instalações. Reconheço que fui bafejado pela sorte mais uma vez, ao ter negociado, na hora certa, o patrimônio imobiliário que possuía em Miami. Mas não dá para ficar confiando na sorte a vida toda.

Como afirmava um saudoso amigo carioca, é chegado o momento, no meu caso, de administrar os ganhos, repartir entre as filhas o que pode ser repartido a tratar de “sossegar o facho”. Não posso, nem devo, assumir novos riscos. Chegou a hora de me fingir de morto e aproveitar as boas coisas que posso curtir nessa vida. Como se diz, ou dizia, no meu saudoso estado natal, “deu prá ti, sorte”.

Foto: Antonio Cuellar (Pixabay)

3 comentários sobre “The American Dream

  • Parabéns Nelson Menda!!!
    Não sabia que você tinha esse dom de escrever tão bem. Impressionante.

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  • Oi, Adriana. Estou aguardando a chegada do seu livro sobre investimentos imobiliários. O mercado já se ressentia de uma publicação do gênero. Será que não seria a ocasião de lançar, também, publicações a respeito das particularidades de cada país a respeito desse tema?

    Resposta

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