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Violino

Por Nelson Menda

Estudei violino durante oito longos anos. Quando bem tocado, é um instrumento fantástico, mas a recíproca também é verdadeira pois, quando desafinado, é um castigo para qualquer ouvido. Devo confessar, todavia, que pude contar, quando comecei a produzir os primeiros acordes no instrumento, com um apreciador que fazia questão absoluta de se posicionar ao meu lado assim que o arco fosse empunhado.

Estou me referindo ao cachorro Joly, meu fiel companheiro de infância, que ficava por perto, uivando e chorando, do início ao final das aulas. Não sei se por emoção, raiva ou apenas solidariedade, mas o fato é que o bicho insistia em se postar ao meu lado assim que tinham início as enfadonhas e repetitivas aulas com o instrumento. E olha que ele não era obrigado a ficar por perto, pois a casa era espaçosa, mas o bicho fazia questão de permanecer uivando ao meu lado. Talvez fosse alguma sensibilidade auditiva específica da espécie ou uma forma de masoquismo canino. Se algum dos leitores puder me auxiliar a identificar o problema, agradeço.

Meu violino era bastante antigo, pois tinha sido adquirido por meu pai assim que comecei a ter aulas de música com minha primeira professora, que fazia parte da OSPA, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Morávamos na Cidade Baixa, perto do Centro, e ela residia na Glória, um bairro distante. Era preciso fazer uma longa viagem de bonde, sempre com o violino a tiracolo.

Eu queria tocar as melodias que já conhecia, mas ela era irredutível. Primeiro, tinha de aprender e praticar a teoria, ou seja, aqueles estudos básicos, chatésimos, para só começar a interpretar peças mais populares depois que tivesse dominado o beabá do instrumento, ou seja, no dia de São Nunca. Devia ser uma estratégia para tentar manter os alunos pagantes pelo maior tempo possível, pois nenhum deles tinha intenção ou talento para se profissionalizar como um virtuose do violino. Eu até conseguia tirar um som aceitável depois de alguns anos de aulas teóricas e muita prática mas, quando começava a tocar, a partir de um determinado momento o violino desafinava por conta própria e não havia santo que desse jeito.

Só vim descobrir a causa do problema, que era mais do instrumento do que do intérprete, quando já estava residindo em Miami e desistido da carreira artística. Um casal amigo do Rio, Leon e Maria Rousseau, estava na Florida de passagem e ele, violinista amador, precisava adquirir cordas para o seu instrumento. Acompanhei-os até uma escola de música dirigida por um violinista e luthier, profissional que constrói e afina violinos, e aproveitei para levar meu velho e surrado instrumento, para fazer uma revisão.

Um pequeno parêntesis para explicar aos neófitos que os violinos possuem quatro cordas, Mi, Lá, Ré e Sol, que garantem a afinação quando suas extremidades se mantém tensas por tração dessas respectivas cordas em estruturas cilíndricas denominadas cravelhas. Se as cravelhas afrouxam ou estão excessivamente tensas o som se altera e o violino fica desafinado.

O luthier descobriu que os orifícios onde duas das quatro cravelhas deveriam se manter firmes apresentavam um defeito congênito de fabricação, pois seu diâmetro era inadequado e, com o próprio uso, iam se afrouxando pouco a pouco. Como consequência, o som se alterava e a culpa acabava recaindo sobre o violinista, quando deveria ser atribuída ao instrumento – e não ao intérprete. Fiquei P da vida, pois nenhum dos supostos professores anteriores tinha diagnosticado o problema e eu até que não era tão ruim como suspeitava, pois quando o luthier corrigiu o problema e empunhei o instrumento, consegui tirar um som, sem falsa modéstia, bem bonito. Mas aí Inês já estava morta e eu tinha desistido de vez da carreira artística.

Esses oito anos serviram para educar meu ouvido e me apaixonar pela música, hábito que continuo cultivando até os dias de hoje. Especialmente depois que algum gênio da tecnologia desenvolveu essa maravilha chamada YouTube, mas voltemos ao meu violino, para não viajar na mayonaise.

Apesar de portar uma antiga etiqueta, em seu interior, supostamente informando tratar-se de um modelo Antonio Stradivarius Cremonensis, era um violino alemão bastante antigo, por sinal de muito boa qualidade. Ofereci o violino ao meu neto mais velho, na suposição de que ele, algum dia, pudesse se interessar em aprender, mas o que ele gosta, na realidade, é de varar as noites matando morto-vivos pela Internet, com amigos de diferentes países e continentes.

Aproveitando a oportunidade, gostaria de revelar aos leitores do blog o que aprendi com o luthier de Miami a respeito de violinos. Não do instrumento propriamente dito, mas de um complemento indispensável à execução de peças musicais. Refiro-me ao arco, constituído por crina de cavalo presa nas extremidades de uma estrutura de madeira semiflexível que a mantém no grau exato de tensão, para que as cordas emitam o som desejado. A melhor madeira para a confecção desse arco deve provir do brasileiríssimo Pau Brasil, espécie quase extinta. Por essa razão, preservacionistas de diversos países, com destaque para os Estados Unidos, Alemanha e Canadá estão financiando o replantio de 12.000 mudas dessa espécie no sul da Bahia, para que os arcos de violinos e demais instrumentos da família, como violas, violoncelos e contrabaixos, possam continuar a ser produzidos e emitir seus inconfundíveis sons.

A essas alturas, muitos leitores do Blog devem estar se perguntando a razão deste texto sobre violinos figurar na revista Bras-il, direcionada para leitores de língua portuguesa residentes em Israel ou relacionados ao povo judeu. Que o digam o judeu russo Yasha Heifetz, o ucraniano Nathan Milstein, os norte-americanos Yehudi Menuim e Joshua Bell, David e Igor Oistrahk, pai e filho, os israelenses Itzahk Perlman e Pinchas Zukerman e tantos outros virtuoses que, seguindo os passos do gênio italiano Nicolo Paganini e na ilustre companhia de intérpretes ciganos e de outras nacionalidades, vem dedicando suas vidas a espalhar a beleza da música pelo globo. São tantos que não haveria espaço suficiente para enumerá-los em uma única edição da revista.

Não gostaria de encerrar sem mencionar o fato de que, na Turquia, onde meu pai nasceu e também estudou violino antes de migrar, com sua família, para o Brasil, o instrumento é empunhado de uma forma bastante peculiar. Ao invés de ser posicionado na horizontal, com sua base apoiada sob o queixo do intérprete, é colocado na vertical, como um pequeno violoncelo. O som é idêntico, mas essa posição permite que o artista interaja com os demais componentes do seu grupo musical e que o violino se associe aos instrumentos de percussão e cordas, como os inconfundíveis derbak e alaúde, tornando as performances alegres e absolutamente contagiantes.

A realidade é que o violino, por sua praticidade, facilidade de transporte e qualidade sonora, se transformou em um dos instrumentos musicais de maior abrangência de todos os tempos.

Foto: Rashami Desai (wallpaperuse)

4 thoughts on “Violino

  • Elizabeth Pipersberg

    Bom eu tive o prazer de conviver com o som do violino do meu novo vizinho, que ensaiava o dia inteiro. o violonista só parava quando viajava em tournées mundo afora. Integrante da orquestra sinfônica da UFF.

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  • Adorei, pai! E seu violino continua aqui bem guardado a espera do próximo corajoso, empenhado e dedicado a aprender!

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  • Nelson Menda

    Oi, Liquinho. Que tal ler para o Noah, já vertido para o inglês, o texto do blog, onde ele é mencionado?

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  • M. Cristina

    Muito bom saber que temos um violinista tao dedicado. O Paulo era um grande fa de Strauss , Mozart e outros grandes mestres do manejo com o violino ,ouviamos muito aqui em casa e ainda continuo ouvindo. otimo texe , excelente estoria. Desculpe a acentuacao .Quanto ao JOLY era um fiel fan de suas melodias , digamos assim.

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