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Carta a um antissemita

Por Marcos L Susskind

Olá companheiro,

Eu te chamo de companheiro mas tenho dúvidas se este é o termo correto. Nós nos conhecemos há tantos anos que talvez eu devesse tratá-lo de meu conhecido ou até mesmo de meu amigo, apesar de jamais termos tido qualquer gesto de amizade.

Eu espero que você leia este texto longo. Você vai aprender muito e talvez, no final, repensar suas atitudes e suas manifestações.

Eu me lembro de você há exatos 2607 anos. Você era babilônio, comandado pelo caldeu Nabucodonosor – o maior império do mundo. A relativa independência de minha pequena nação incomodava seu imenso império. Então você invadiu minha terra, destruiu meu Templo, me levou cativo para a Babilônia, na esperança que eu desaparecesse tal como desapareceram todos os reinos que você conquistou. Mas no meu caso, a terra era um apêndice de meu espírito e eu continuei leal a meu D’us e ao meu povo. Anos mais tarde Ciro te conquistou e me libertou e eu voltei para Judá.

Assim começou o antissemitismo: era sociocultural.

Eu me lembro de você há exatos 2168 anos. Era o ano 167 AEC e você era grego, orgulhoso de suas inúmeras divindades. Você não conseguia entender como eu não aceitava seus deuses esculpidos em imensas estátuas de mármore e optava por venerar um único D’us, sem forma ou estátua, invisível mas sempre presente. Você tentou me forçar a rezar para um deles e eu não aceitei. Sob o risco de extermínio eu enfrentei seus poderosos exércitos e com ajuda de meu D’us, venci seu poderoso e “invencível” exército.

Eu me lembro de você há exatos 1951 anos. Nesta época, você era romano. Tal como seus predecessores, o império mais forte do mundo. Você já havia conquistado minha nação há sete anos, mas se incomodava com o fato de eu – de novo – não aceitar seus deuses. Para me punir, você colocou impostos extorsivos e eu me rebelei. Lutei contra você por quatro longos anos, mas no ano 70 EC você finalmente entrou em Jerusalém, sob o comando de Tito. Você destruiu completamente meu magnífico Templo – dele só restou o muro Ocidental, venerado por mim desde então. Você me levou cativo para Roma e me dispersou pelo mundo, na vã esperança de me destruir. Como consequência eu fui parar em Florença e na Bulgária, na Turquia e na Polônia, na África do Sul e no Brasil e em todo lugar onde você possa imaginar, lá eu cheguei nestes quase dois mil anos de dispersão. Mas em todos os lugares aonde eu cheguei, erguia escola e sinagogas e mantive minha fé e minha pertinência a meu povo.

Eu me lembro de você há exatos 1889 anos. Nesta época, você seguia romano e decidiu destruir qualquer lembrança de meu passado glorioso. Você era Adriano, o César de Roma e em seu ódio por mim, mudou o nome de minha sagrada Jerusalém para Aelia Capitolina e construiu um templo para Júpiter sobre os escombros de meu Templo Sagrado bem como me proibiu de circuncidar meus filhos. Eu me revoltei e – comandado por Bar Cochba – lutei contra você por três longos anos, enfrentei sete legiões, cada uma com 5200 guerreiros e 2500 forças auxiliares e destruí sua possante 10ª Legião bem como infligi perdas imensas nas outras seis. Então, Adriano, o Senado Romano não te permitiu fazer a clássica declaração: “A Paz comigo e com minhas tropas”. Você se sentiu humilhado e me puniu. Mudou o nome de minha pátria. Eu já não seria conhecido como Judeia ou Israel, mas sim como Philistina. Assim você homenageava meus ferrenhos inimigos do passado – os Filisteus. Com o tempo, a sua Philistina virou Palestina. Você levou os últimos judeus embora, cativos, para a Europa e pôs um fim a quase 2000 anos de vida judaica sobre este solo. Mas eu voltaria, quase 2000 anos mais tarde, quando o Império Romano já havia desaparecido há séculos, mas eu seguia vivo!

Aqui começa uma nova faceta. Além do antissemitismo sociocultural, aparece uma nova forma, que vai conviver com a anterior: o antissemitismo religioso

Eu me lembro de você há exatos 1715 e há 1707 anos. Nesta época, você era cristão e tinha muito receio de perder seus pares. Então você deixou claro, nos concílios de Elvira e de Arles que havia inimigos: os hereges, os gentios e os judeus. Interessante que nós não éramos hereges (porque não éramos politeístas) e nem gentios (porque não fazíamos sacrifícios). Mas adorávamos a um só D’us e isto poderia “competir” com você. Judeus nunca crucificaram ninguém, era uma prática dos romanos. Mas Roma ainda era influente e isto seria mal visto. No entanto, era necessário “criar a separação”, então decretou-se que os judeus crucificaram Jesus (apesar de isto não constar nos evangelhos). Além disso, todos os seguidores iniciais de Jesus eram judeus, então era fundamental criar um nome à parte para este ramo judaico – aparece o termo “Cristão”. E em Elvira (314) se decretou: “Se algum clérigo ou batizado come com judeus, concordou-se que se abstenha da comunhão, para que se emende (ut debeat emendari)”.

Eu me lembro de você há exatamente 1399 anos. Seu nome era Maomé. Você iniciou uma nova religião, o Islamismo e pensou que atrairia a massa Judaica. Para isto, criou a Umma, reunião de Árabes, Cristãos e Judeus em Medina. Orava-se em direção a Jerusalém e apropriava muitos símbolos e histórias Judaicas. Mas os Judeus não aderiram à nova fé – e você passou a nos odiar, escreveu a Sura 9 cap 5, ordenando… a morte dos infiéis, a minha.

Eu me lembro de você há exatamente 922 anos. Agora seu nome era Cruzado. Você vinha da Europa para conquistar a Terra Santa. No seu caminho você bateu, estuprou, queimou e matou com sua espada milhares de meus irmãos judeus. Você tinha sede de sangue. O judeu piedoso o fazia envergonhar-se de sua maldade e então, ao invés de se transformar em mais humano, você optou por matá-lo, destruí-lo. Você dominou a Terra Santa por quase 200 anos, mas foi varrido de lá também – e não foi pelos judeus mas sim por Saladino (Salah A Din), o Muçulmano Curdo.

O antissemitismo sociocultural e o antissemitismo religioso vão receber uma nova companhia: o antissemitismo financeiro. Entre os séculos 12 e 15, vai ser a forma principal de antissemitismo.

Eu me lembro de você na Idade Média. Você precisava humilhar os judeus. O que você considerava mais repulsivo e hediondo era o empréstimo a juros. Então você proibiu ao judeu ter terras. Também lhe proibiu de estudar e de fazer parte das Guildas, as associações de profissionais. Tendo como única profissão viável o “horrível e vergonhoso” empréstimo a juros, o judeu começou a enriquecer – e a ser ainda mais odiado pelos que lhe deviam. Tendo enriquecido, passaram a emprestar também a nobres e a monarcas e então você descobriu que se os expulsassem de suas terras, cancelava suas dívidas e ainda se apropriava de seus bens. E você passou a expulsá-los cada vez que suas dívidas ficavam altas demais. Assim foi na Alemanha, na Áustria, na França, na Inglaterra, na Hungria, na Suíça. E você ainda criou o humilhante termo “Judeu Errante”. Você me fazia ir de lugar em lugar, roubava meus bens, não pagava suas dívidas e ainda me acusava de ser “Judeu Errante”. E assim, aumentava o ódio contra mim.

E então, em 1492 na Espanha e 1536 em Portugal unem-se todas as formas de antissemitismo para criar a Inquisição. Judeus são perseguidos por serem agiotas (empurrados a isso pela Igreja), por não trabalharem a terra (que lhes era proibido), por serem profissionais liberais (por falta de opção), por serem unidos (sua forma de defesa) e por não serem cristãos. Enfim, fundem religião, cultura, finanças, sociologia e dão aos judeus apenas três opções: converterem-se, fugir ou arder na fogueira. Pouco depois, só arder na fogueira, pois não adiantava mais se converter ou fugir – a inquisição estava em todo lugar… Você vê, eu não esqueci. Eu te conheço também desta época.

E eis que venho a te conhecer de novo no final do século XIX. É enfim “inventada oficialmente” a palavra “antissemitismo”. Nascia o antissemitismo racial, que vai desembocar no Nazismo. 6.000.000 de judeus são aniquilados, um terço do povo judeu desaparece. Passados 76 anos do fim desta tragédia, ainda não voltamos ao número de judeus de 1939. Mas você seguiu nos odiando.

E então veio o início da redenção. Há inúmeros países cristãos no mundo, inúmeros países muçulmanos. Há países sunitas e xiitas, hindus e budistas. Em 1948 é criado o primeiro e único país judaico. E você volta a aparecer, agora com nova roupagem: antissemitismo político – a negação do direito dos judeus a um Estado Nacional. Você que já me odiou por motivos sociais, culturais, religiosos, financeiros e raciais criou agora o ódio nacional.

Mas neste final de carta, meu companheiro, conhecido ou amigo, eu tenho um recado para você: os babilônios desapareceram, o Império Grego também. Os romanos, os cruzados, os mamelucos, os inquisidores e os nazistas. Mas nós continuamos aqui. E, para seu conhecimento, nós seguiremos aqui depois que você também desaparecer. Quer saber por quê? É porque nós santificamos a vida e não a morte, santificamos a Unidade Divina e não o poder, santificamos o saber e não a destruição, santificamos nossas crianças e não os seus algozes.

Dentro de muitos anos, quando você já não estiver aqui, algum outro judeu estará escrevendo a outro antissemita como você – e ele também desaparecerá enquanto nós aqui permaneceremos, leais a um só D’us, trazendo mensagem de ética, de amor, de compaixão – consertando um mundo que você insiste em manter destroçado.

Foto: Wikimedia Commons

3 comentários sobre “Carta a um antissemita

  • Perfeito Marcos. Creio que, se dirigindo a brasileiros podia ter mencionado: sugiro que procure as raises de sua árvore genealógica pois é bem possível que você seja descendente de judeus, os chamados cristãos novos ou os Marranos.

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  • Você está certo – a chance é bastante grande

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