Nomes e sobrenomes
Por Nelson Menda
Meu nome completo é David Nelson Menda, mas sou mais conhecido como Nelson Menda. O David foi inserido para manter a tradição judaica de honrar a memória ancestral, pois David Menda era o nome do meu avô Z”l – de saudosa memória – pai do meu pai.
Na realidade, chegamos a representar quatro pessoas com o mesmíssimo nome e sobrenome na Leal e Valerosa Porto Alegre, mas existia um artifício para evitar confusões. O patriarca era o Vô David. O segundo David veio a ser um dos meus primos, que agregou dois sobrenomes 100% sefaradis, um da Espanha e Turquia, da mãe, e outro do seu pai e meu tio, natural da Grécia. Na realidade, sou o terceiro David Menda da família, mas como também ostento o Nelson, homenagem do meu avô materno, Alberto Peissahk, ao Almirante inglês, herói de uma famosa batalha, nunca sei se de Waterloo ou Trafalgar. Para finalizar – e evitar confusões com os demais – veio o quarto Davi, assim mesmo, sem o D final, que ficou conhecido, na família, como Davizinho. Eu e ele temos praticamente a mesma idade, com uma diferença de poucos meses.
Os outros três Davids podem ser considerados “Sefaradis Ouro”, pois são filhos de pai e mãe sefaradis ou, como se diz em ladino, de los muestros. O fato da família da minha mãe também ser judia, mas não sefaradi, poderia representar o prenúncio de que o casamento dos meus pais corria riscos. Já explico a razão dessa opinião pouco otimista.
Enquanto os sefaradis turcos, como os Menda, falavam ladino, os asquenazis se comunicavam em iídiche. Além da gritante diferença entre os idiomas e à própria culinária, havia um outro aspecto a considerar. Os sefaradis eram brincalhões e faziam troça uns dos outros, geralmente utilizando dichos, provérbios em que predominava um refinado senso de humor. Já alguns asquenazis, na minha família, eram mais conservadores e não aceitavam certas brincadeiras.
Contradizendo as expectativas pessimistas, o casamento durou bastante e posso assegurar que eles foram muito felizes, apesar do falecimento precoce do meu pai. Minha mãe conseguiu aprender todos os segredos da culinária sefaradi e turca, o que ajudou a manter o clima de harmonia conjugal. Com o passar do tempo e a melhoria progressiva da condição financeira, minha mãe delegou a preparação dos alimentos às diferentes empregadas domésticas, que acabaram se integrando ao núcleo familiar.
Quanto ao meu avô materno, ficou conhecido na coletividade judaica gaúcha como englander, ou seja, inglês. Mas por que cargas d’água inglês, se ele nasceu na Bessarábia, atual Moldávia? Simplesmente porque ele e a esposa poderiam ser considerados nômades, pois nasceram em um país, migraram para outro, depois para mais um outro, até chegar à capital inglesa antes de se radicar em Porto Alegre. O sonho desse avô era continuar residindo em Londres, que ele adorava. Todavia, ao saber que deveria se engajar como soldado raso no exército britânico se quisesse continuar vivendo legalmente na Inglaterra, teve de rever seus planos. Maçom e pacifista, já casado, com uma filha pequena e outra a caminho, fez as malas, retornou à França e embarcou em um navio com destino à Argentina, onde já viviam suas irmãs. Pelos meus cálculos, deve ter ingressado no Brasil, junto com as irmãs, pela fronteira Paso de Los Libres-Uruguaiana.
Com o ramo paterno, a rota migratória também foi complicada. Depois de viver, por gerações, na pequena aldeia de Menda, na Galícia espanhola, meus ancestrais optaram por cair fora no reinado de Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Tinha sido um casamento arranjado, para unir Aragão e Castela, formar um exército e expulsar os remanescentes mouros da Península Ibérica. Quem realizou as tratativas pré-nupciais foram, respectivamente, os conselheiros reais Dom Isaac Abravanel, de Castela e Abrão Seneor, de Aragão, ambos judeus. Só que o tiro saiu pela culatra pois, ao invés de pagar as dívidas da guerra travada contra os muçulmanos, que tinham sido contraídas junto a banqueiros judeus, o casal decidiu dar o calote. Muito mais simples e econômico expulsar os judeus, sem honrar a palavra assumida. Milhares de judeus foram convertidos à força, vindo a se constituir nos chamados Cristãos-Novos.
Mas nem todos aceitaram a conversão passivamente. Meus ancestrais paternos, residentes no pequeno vilarejo de Menda, Galícia espanhola, região de Dimo e Catoira, que cheguei a visitar há alguns anos, eram tradicionais moradores daquela localidade. Preferiram abandonar seus parcos pertences, entre eles suas casas de pedra e, no jargão futebolístico, “tirar o time de campo”. Segundo a história familiar, contada e recontada a cada encontro, geralmente durante as efemérides religiosas, os três irmãos que residiam em Menda não levaram muita fé nas promessas reais e preferiram cruzar a fronteira entre a Espanha e Portugal, em 1492, e se estabelecer no país vizinho. Mas a felicidade durou pouco, pois D. Manuel, soberano luso, decidiu contrair núpcias com a filha de Fernando e Isabel. Para tentar engambelar os reis da Espanha e os próprios judeus radicados em Portugal o soberano inventou a história de que iria enviá-los para a Terra Prometida em naves lusas. Mas o que aconteceu, na realidade, foi um engodo, pois não havia navio algum para transportá-los. D. Manuel convocou sacerdotes católicos, mandou preparar uma grande quantidade de uma suposta “água benta”, para aspergi-la sobre as cabeças dos incautos que “ficaram a ver navios”, à espera das embarcações que os conduziram a Israel e que nunca chegaram.
Meus parentes paternos, ao que tudo indica, não caíram naquela esparrela. Mantiveram-se fiéis à crença ancestral, saíram de Portugal e conseguiram chegar, depois de muitos percalços, à Salônica, que fazia parte, à época, do poderoso e tolerante Império Otomano. Tolerante para os seus cidadãos e a nações que aceitavam prestar vassalagem ao Sultão. A essas alturas o sufixo de Menda já tinha virado sobrenome, em um fenômeno denominado toponímia, e passamos a ostentar o Menda, do qual muito nos orgulhamos, até os tempos atuais.
Comparando com os demais sobrenomes judaicos de origem ibérica, até que os Mendas não são assim tão numerosos, pois são poucos os parentes conhecidos que vivem, atualmente, no Brasil, Israel, Estados Unidos, Turquia e Porto Rico. O pitoresco é a existência de características comuns a todos eles, geralmente relacionadas à comunicação e muito pouco às ciências exatas, se bem que toda regra admite suas exceções. Tomei conhecimento, em um congresso do Confarad, do qual fui um dos idealizadores, de um certo “Monsieur Mendá”, que dirigiu uma escola da Alliance Israèlite Universelle em Aleppo, na Síria. Muita gente da família enveredou pelo terreno das comunicações e do magistério, ao passo que contam-se nos dedos os que foram bem sucedidos nas atividades mercantis. Felizmente, os poucos que se dedicaram aos negócios se deram bem, fruto da sua própria criatividade e perseverança.
De vez em quando me questiono se teria sido melhor permanecer naquele modesto vilarejo espanhol, aceitar a conversão forçada ao cristianismo ou ter caído fora? A resposta é óbvia, pois não consigo me enxergar como um pastor de ovelhas ou um agricultor dedicado à plantação e colheita de uvas, atividades que, suponho, devem persistir até os dias atuais, na diminuta aldeia de Menda. Como é mais fácil enxergar a realidade à distância, parabenizo nossos ancestrais, que fizeram a opção correta em uma ocasião em que era bastante difícil diferenciar entre o certo e o errado.
Vale ressaltar que, a todo o momento nos deparamos, na vida, com distintas encruzilhadas e nem sempre a melhor opção é a que aparenta ser a mais fácil de trilhar. Os que, por infelicidade, erram na hora de fazer suas escolhas, acabam ficando para trás, engolidos pela poeira da estrada e da própria história, pois é bastante complicado reconhecer o equívoco, engatar a marcha ré e refazer a trajetória. Todavia, sempre vale a pena tentar corrigir o rumo pois, como assegura um sábio ditado, “errar é humano, mas persistir no erro é burrice”.
Foto: Daytonarolexboston,CC BY-SA 3.0 (via Wikimedia Commons)
Caro Nelson.
Lí com emoção seu belo texto e vejo que acabamos tendo algumas coincidências. Seus antecedendes e os meus fizeram caminhos semelhantes, meus avós maternos, sem saber e conhecer o Brasil aceitaram
entrar num navio e acabar em Quatro Irmãos, RS e dali para Porto Alegre. Já meu pai, saiu de Jitomir, Ukrânia que faz pouco esta cidade próxima de Kiev foi bombardeada. Vai aqui a pergunta de de um milhão de dólares: Teriamos nos conhecido eu e Vc. não fossem estes corajosos ancestrais?
Estariamos podendo contando estas estórias? Ou eu poderia esperar chegar aos 90 anos dentro de 6 meses e ter cinco netos? Nossa gratidão a estes herois, e aos benfeitores que os ajudaram nesta travessia.
Caro Nelson.
Lí com emoção seu belo texto e vejo que acabamos tendo algumas coincidências. Seus antecedendes e os meus fizeram caminhos semelhantes, meus avós maternos, sem saber e conhecer o Brasil aceitaram
entrar num navio e acabar em Quatro Irmãos, RS e dali para Porto Alegre. Já meu pai, saiu de Jitomir, Ukrânia que faz pouco esta cidade próxima de Kiev foi bombardeada. Vai aqui a pergunta de de um milhão de dólares: Teriamos nos conhecido eu e Vc. não fossem estes corajosos ancestrais?
Estariamos podendo contando estas estórias? Ou eu poderia esperar chegar aos 90 anos dentro de 6 meses e ter cinco netos? Nossa gratidão a estes herois, e aos benfeitores que os ajudaram nesta complicada travessia.
Oi Bernardo. Nossos ancestrais eram corajosos, pois partiam em busca de um país desconhecido, sem dispor dos recursos existentes atualmente. Por sorte chegaram, trabalharam duro e venceram.
Belíssima história, muito bem escrita.