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Torre de Babel

Por Nelson Menda

Yá comimos y bebimos y al Dió Santo bendeximos. Que mos dió y mos dará pan para comer, panos para vestir y anios munchos y buenos para vivir…

Essa singela oração costumava ser recitada após o término de cada refeição. Por quem? Pelos judeus sefaradis de origem ibérica, que tinham no ladino sua língua mãe. Todos eles? Não, porque parte dos sefaradis marroquinos utilizava a haquetía, espanhol entremeado por palavras em hebraico e árabe. Todos eles? Também não, porque uma parcela dos sefaradis se comunicava em árabe, ao contrário dos descendentes daqueles que foram expulsos da Espanha e Portugal. Minha própria família paterna, cujo sobrenome deriva de uma localidade espanhola que cheguei a conhecer, na Galícia, buscou refúgio na Turquia após a expulsão da Espanha.

A mesma Galícia da Europa Central, de onde provém muitas famílias esquenazis? Não, prezados leitores. Apesar da semelhança entre os nomes, essas duas Galícias ficam relativamente distantes uma da outra. Ao contrário dos sefaradis, que utilizavam o ladino, haquetía ou árabe, os esquenazis se comunicavam em iídiche, também chamado de judeu-alemão.

Sob uma perspectiva histórica, os judeus, regra geral, utilizavam três idiomas: 1 – O hebraico, para rezar, 2 – a língua do lugar de onde são originários e 3 – o idioma do último país de onde tenham saído ou tenham sido expulsos. Estou me referindo ao judaísmo que precedeu a criação do moderno Estado de Israel, em 1947.

Todavia, nem mesmo o hebraico litúrgico se manteve impermeável à evolução do idioma. Lembro de uma cerimônia do Yom Kipur, o Dia do Perdão, que assisti na Sinagoga Beth-El assim que cheguei ao Rio, em 1968. Como não domino o hebraico, utilizava uma versão transliterada para o português na tentativa de acompanhar a cerimônia. Perto de mim, um senhor de meia idade, israelense, aparentemente tentava, sem sucesso, seguir as rezas. Aprendi, naquela ocasião, que o hebraico, apesar de ser uma língua bastante antiga, também evoluiu nesses 5784 anos de história judaica.

Se a contagem do tempo, para os cristãos e grande parte do mundo ocidental, se inicia com o nascimento de Cristo, há 2023 anos, começa, para os judeus, com Adão e Eva, o primeiro casal a habitar o Jardim do Eden. O que se pode deduzir da própria história da humanidade em geral e dos judeus em particular é que ocorreram grandes correntes migratórias desde que Abrahão deixou sua Ur nativa, na Caldeia, em busca da Terra Prometida, a Eretz Israel das escrituras.

A confusão teve início quando ele decidiu, como era permitido aos homens, na época, desposar duas mulheres. Sara, a matriarca dos judeus, mãe de Isaac e Agar, a mãe de Ismael. Confusão que ainda perdura, passados tantos séculos e não serei eu a tentar entendê-la ou desfazer o imbróglio.

Voltando à minha família judaica, vale ressaltar que meus ancestrais paternos conseguiram sair com vida da Espanha após o problema criado pelos desmandos da Rainha Isabel que, além da expulsão de judeus e mouros, entre outras esquisitices, se gabava de nunca ter escovado os dentes. Da localidade de Menda, na Espanha, de onde provém nosso sobrenome, conseguiram chegar, ao que tudo indica, a Salônica, na Grécia, pertencente, na época, ao Império Otomano. Pela tradição oral, que minha família sempre cultivou, tanto judeus quanto muçulmanos se relacionavam muito bem na Turquia, apesar de algumas poucas restrições que não chegaram a comprometer a amizade e o entendimento entre eles. Uma parte da família migrou da Turquia para o Brasil nos anos vinte do século passado enquanto a outra decidiu permanecer por mais algum tempo naquele país.

Já a família da minha mãe é originária da Moldávia, também chamada de Bessarábia. Meu avô materno, um liberal pouco chegado às coisas da religião, assim que teve condições foi morar em Londres, que ele amava. A ponto de ficar conhecido como Englander, inglês em iídiche. Pacifista assumido, tremeu nas bases quando foi convocado a lutar pelo exército britânico em uma das muitas colônias espalhadas pelo mundo. Mandou extrair todos os dentes, na vã tentativa de ser dispensado do serviço militar. Não adiantou. Saiu “à francesa” da capital britânica, com a esposa e a filha mais velha, enquanto minha avó, grávida da minha mãe, estava para dar a luz. Chegaram a Paris em plena efervescência pós revolução russa de 1917. A capital francesa fervilhava com a chegada de multidões de refugiados russos.

Quando meu avô, que chamávamos de zeide, soube que suas irmãs tinham migrado para uma colônia judaica na Argentina não titubeou. Embarcou com a esposa e as duas filhas pequenas para aquele país. No trajeto para o Brasil recolheu as irmãs e os cunhados que estavam na Argentina, pegou um trem em Uruguaiana e se radicou, inicialmente, na cidade de Cachoeira do Sul, onde nasceu a terceira filha.

Bom de papo, dominando o iídiche, o francês e o inglês, envergou um uniforme de marinheiro britânico e passou a viajar nos vagões da Viação Férrea Riograndense apregoando cortes de caxemira inglesa para os demais passageiros. Ficavam todos curiosos com a oportunidade de conhecer um marinheiro inglês de carne e osso que tinha histórias incríveis para relatar. Radicado, posteriormente, na capital gaúcha, conseguiu levantar fundos para adquirir um ford-de-bigode, como eram chamados os primeiros automóveis que chegaram ao Brasil e adquirir selos, moedas, bengalas e tudo o mais que pudesse ser colecionado.

Tive pouco contato com ele, que faleceu quando eu deveria estar com quatro ou cinco anos, mas conseguiu emplacar um dos meus prenomes, sua homenagem ao Almirante inglês que venceu a Batalha de Trafalgar, contra as esquadras francesa e espanhola. Meu outro prenome, David, devo ao meu avô paterno, pai do meu pai, que tocava shofar nas cerimônias litúrgicas da única sinagoga sefaradi de Porto Alegre, o Centro Hebraico Riograndense.

Uma das boas coisas da minha infância e adolescência registradas, de forma indelével, na memória eram as reuniões e encontros de família onde os mais velhos contavam e recontavam histórias e “causos” a respeito do passado. A televisão ainda não tinha chegado ao sul do Brasil e as longas e geladas noites de inverno eram acompanhadas por programas radiofônicos das três emissoras locais, ao mesmo tempo em que se degustavam pinhões quentinhos, apregoados por vendedores que ofereciam a iguaria de porta em porta. Bons tempos, caros leitores e leitoras, que não voltam mais…

4 thoughts on “Torre de Babel

  • M.N.

    Faltou uma língua: a Guemarah é estudada em aramaico até hoje.

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  • Que artigo delicioso! Mesmo Asquenazi por ambos os lados, a matéria falou ao meu coração, como certamente acontecerá com todos que tiverem o privilégio de lê-la. Vou compartilhar.

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  • Cecilia Fonseca da Silva

    Texto gostoso de se ler. Parabéns, Nelson, amigo querido. Abraço da Cecilia.

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    • Nelson Menda

      Oi Cecilia. Agradeço seu comentário, além de ficar feliz em saber que vc. acompanha meus textos. Abs.

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