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Uma difícil decisão

Por Nelson Menda

Estava com a vida organizada no Brasil, residindo na cidade, bairro e prédio que tinha escolhido como localizações ideais e onde pretendia permanecer pelos próximos anos, até à chegada da merecida aposentadoria. Bastaria dar continuidade à rotina e curtir o que a vida tinha de melhor.

Não pensem que tenha sido fácil chegar lá. Os últimos dez anos de plantões, aos sábados e/ou domingos, tinha representado abrir mão de festas e convites para fins de semana em lugares paradisíacos que somente uma cidade chamada de maravilhosa poderia proporcionar.

De repente, sem aviso prévio, tudo mudou. Dois acontecimentos marcantes causaram uma completa reviravolta em meus planos. O primeiro deles foi a visita do gerente do banco em que mantinha conta, informando que ela teria de ser encerrada. “Por que”? perguntei. “Falta de saldo médio”, respondeu. Não consegui entender. Trabalhava em um hospital público e recebia um salário bastante razoável. Além disso, já era proprietário tanto do apartamento em que residia quanto do imóvel onde funcionava minha clínica ortopédica, além de sócio de uma empresa de produtos farmacêuticos. Não possuía dívidas, pois sempre tinha feito questão de pagar minhas contas rigorosamente em dia e mantinha o que me parecia ser um bom saldo na conta bancária. Os tempos difíceis tinham ficado para trás e, pelos meus cálculos, bastaria manter o mesmo padrão para continuar vivendo confortavelmente pelos próximos anos, além de propiciar às minhas filhas a melhor escolaridade possível. Alguma coisa estava errada – e era preciso esclarecer. Acabei descobrindo que o problema não era comigo, mas com o país em que estava vivendo. Qual o país? O Brasil, caros leitores!

O segundo acontecimento foi bem mais traumático. Em pleno onze de setembro, quando o mundo todo assistia, atônito, à derrubada das torres gêmeas, o prédio em que eu residia, no Rio, foi invadido por uma quadrilha armada. Todos os moradores e visitantes que chegavam eram rendidos e conduzidos para um dos apartamentos, que passou a funcionar como bunker dos bandidos. Minha filha menor, que estava em casa, me viu chegar com uma arma apontada para a cabeça empunhada por um bandido com o rosto encoberto por uma meia, o que lhe conferia um aspecto assustador. Eu e ela fomos rendidos e estávamos sendo conduzidos, escada abaixo, sob a mira dessa arma, quando aconteceu algo inesperado. Entardecia e o bando, ao que tudo indica, pretendia passar a noite no prédio, para vasculhar e roubar todos os apartamentos. Eles só não sabiam que a calçada do edifício servia de estacionamento de espera para os funcionários de uma tradicional loja de joias de Ipanema. Os bandidos, sem entender direito o que estava ocorrendo, julgaram que estariam sendo cercados e decidiram abortar o assalto. Fomos salvos por milagre, mas o susto foi grande.

Juntamente com a derrubada das torres gêmeas, o episódio foi o assunto do dia nos principais telejornais daquele onze de setembro. Posteriormente, após o depoimento na Delegacia, tomamos conhecimento de que o “olheiro”, ou seja, a pessoa que havia informado a quadrilha sobre o prédio e seus moradores, era o bombeiro do bairro, que costumava ser chamado para realizar serviços nos apartamentos. O mais sério, porém, só vim a saber algum tempo depois. O chefe da quadrilha era um policial, que permanecia na porta dos edifícios que estavam sendo saqueados. Caso chegasse algum outro suposto agente da lei, ele informava que o caso já estava sendo solucionado. Algum tempo depois essa – ou outra quadrilha que operava na mesma modalidade – assaltou um outro edifício da vizinhança e um dos bandidos atirou e matou, à queima-roupa, uma moradora com um tiro na cabeça. Alegou que não estava gostando do jeito que ela o olhava. Não era preciso ser muito antenado para enxergar aquela triste realidade. Algo muito grave estava ocorrendo.

Além da inesperada visita do gerente do banco e do assalto à mão armada, era possível perceber que o país estava entrando em um ciclo de violência sem prazo para terminar. Estava na hora de, utilizando um jargão futebolístico, “tirar o time de campo”.

Por uma feliz coincidência, minha filha mais velha, que tinha acabado de retornar de um programa de intercâmbio nos Estados Unidos, revelou o desejo de se transferir, de vez, para a terra de Tio Sam. Apesar de ter estudado em excelentes escolas no Rio, o período em que passou nos Estados Unidos foi suficiente para analisar as diferenças entre o padrão de vida dos dois países. Minha obrigação, como pai, era a de propiciar-lhe condições para a concretização desse projeto. A primeira coisa a fazer era encontrar um estabelecimento de ensino cujo currículo fosse compatível com a carga horária das escolas norte-americanas, para que ela não perdesse aulas quando chegasse o momento de fazer as malas e viajar.

Eu já andava desgostoso com o que ela vinha aprendendo na disciplina de geografia, que me parecia sofrer algum tipo de influência político-partidária. Pelo livro recomendado, países legais eram os do chamado terceiro mundo, com destaque para a Indonésia. Isso mesmo, a Indonésia! Estados Unidos, Canadá, França e Inglaterra, segundo o autor do livro, eram países de segunda linha. Fui falar com a professora e também com a coordenadora do segundo grau de uma das mais conceituadas – e caras – escolas particulares do Rio, que ela frequentava desde o pré-primário. Nada feito, pois os livros eram escolhidos pelos professores de cada matéria e não poderiam ser substituídos. Decidi transferi-la de escola e matriculá-la em um estabelecimento de ensino judaico para concluir o segundo grau. Estava ficando difícil encontrar alguma escola laica que não utilizasse os livros desse mesmo autor. Dentre as diferentes instituições de ensino israelitas do Rio, optamos pelo Liessin, conhecida pelo elevado nível didático e tradição de liberalidade.

Minha filha tinha estudado no IBEU e possuía um nível de inglês muito bom, o que havia facilitado sua aceitação tanto no programa de intercâmbio quanto na própria Universidade de Connecticut, que passou a frequentar quando chegou aos Estados Unidos. Foi um sufoco arcar com as despesas das mensalidades e também da hospedagem e alimentação nesses primeiros tempos em que passou a residir naquele país. Por sorte deu para suportar, mas seria difícil enfrentar os custos do restante do curso superior e também da faculdade da filha menor que iria, com toda certeza, querer seguir os passos da irmã. Por sorte, a mais velha tirou excelentes notas e se qualificou para receber uma bolsa integral pelos próximos anos, o que representou um alívio para mim.

Moral da história: as duas vieram estudar nos Estados Unidos, onde conheceram seus futuros maridos, casaram, tiveram filhos e acabaram me trazendo junto assim que requeri minha aposentadoria no Brasil. Passados tantos anos, acabei caindo na real de que aquela inesperada visita do gerente do banco ameaçando encerrar minha conta por falta de saldo médio foi uma das melhores coisas que poderiam ter me acontecido. E que o incidente com o assalto representou a gota d’água para desatar os nós que ainda me prendiam a Pindorama. Quem poderia imaginar as crises econômicas e políticas que ainda iriam ocorrer no país em que fui educado para amar com fé e orgulho, como preconizava Olavo Bilac?

Como eterno otimista, faço votos de que as coisas melhorem tanto cá quanto lá, pois morro de saudades do meu torrão natal. Nestes últimos dias, em que se celebrou o Halloween aqui nos Estados Unidos, deu para perceber o quão distintos são os dois países. Ao ver meus netos retornarem à casa da filha menor, fantasiados de almas penadas e abarrotados de guloseimas, lembrei dos rigorosos invernos gaúchos, em que comíamos pinhões e bebíamos quentão. Bons tempos que já se foram, pois não sei se ainda existem pinheirais no sul do Brasil. Tive o privilégio de vivenciar essas duas realidades distintas e poder usufruir o melhor de cada uma delas.

Foto: Rodrigo Soldon Souza (Flickr)

10 thoughts on “Uma difícil decisão

  • Jeferson Bossoni Mendes

    Nossa triste realidade brasileira do inicio do século XXI!!!
    Excelente artigo Nelson!

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    • Sergio Faermann

      Gostei do artigo primo Nelson!
      Sou fã do teu Blog.
      O que ocorreu contigo no Brasil, ainda continua a ocorrer agora. Embora eu tenha saído do Brasil em 1979 para Israel, acompanho o que se passa lá através de amigos e a minha família. Quando te transferistes para os Estados Unidos?

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  • Carlos Sena

    Que susto Nelson. Nosso amigo Flávio Oliveira passou por um sufoco parecido aqui no sul. É aterrador e esse túnel parece não ter fim. Grande abraço.

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    • Vani Medina

      Que situação horrível pela qual passastes! Um pesadelo! O importante é que depois disto tomastes a decisão correta e te fostes porque segurança é tudo! Muito lamentável a situação do Brasil…torço para que tudo se melhore por lá e no restante do mundo…
      Saudades de ti.

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  • Vani Medina

    Que triste o que aconteceu contigo Nelson…. felizmente tomastes a decisão acertada! Ir-se correndo dali…o Brasil é lindo mas a falta de segurança acaba com tudo isto! Lamentável!
    Também sigo torcendo para que o Brasil, aqui (USA) e o mundo se melhorem….
    Abs.

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  • Nelson Menda

    É inacreditável como esses acontecimentos tem se repetido no Brasil, sinal de que nada mudou. Estou residindo nos Estados Unidos há aproximadamente 10 anos, com idas periódicas ao Brasil para rever amigos e parentes. Da última vez, minha filha mais velha chegou a presenciar, em um único dia, quatro assaltos. Sinceramente, apesar das saudades, não tenho vontade de retornar.

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  • Magale Dorfman

    Sempre aprendo alguma coisa com teus textos,sobre o Brasil ou sobre v. e suas meninas… Daquele assalto me lembro bem, da visita do gerente do banco, nao ficou explicado…mas nao faltarao oportunidades… abracao!!!!!

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  • Nelson Menda

    Oi, Magale. Na realidade, acredito que o gerente do banco estivesse blefando, até mesmo porque ele não poderia encerrar minha conta. Era uma conta-salário, onde eu recebia meus pagamentos mensais. Mas os bandidos que foram rendendo os moradores do prédio e fazendo uma limpa nos apartamentos foi algo aterrorizante. Junto comigo estavam minha mãe, além da moradora do apartamnto onde fomos trancafiados, minha sócia e os funcionários da nossa empresa, que funcionava no prédio, o zelador do edifício e um entregador, acho que de pizza, que foi fazer uma entrega. Tivemos sorte em escapar vivos, o que não acorreu, dias depois, no edifício vizinho, em que eles mataram uma moradora dentro do elevador. Depois disso já assassinaram o dono dos pedalinhos da Lagoa, que morava no prédio, um médico que gostava de pedalar na orla e uma porção de gente. O Rio ficou perigoso.

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  • Maria Alice Dorfman Palma

    Oi Nelson.Espero q te lembres ainda dessa prima gaucha. Tenho lido teus textos, sempre bem interesantes e animados. Realmente viver no Brasil nao é para os fracos mas vamos teimando.
    A respeito de pinhões e quentões, a tradiçao continua a mesma. e a quem interessar possa, ainda existem muitos pinheirais e os pinhões continuam muito bons. Abraço grande, Maria Alice

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  • Ester Menda

    Sim querido primo, ainda comemos pinhão no inverno. Uma delícia!

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