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Olho vivo

Por Nelson Menda

Há uma cena antológica no final do Violinista no Telhado, em que os moradores da aldeia russa retratada na obra recebem ordens das autoridades tzaristas para abandonar suas casas e ir embora, para sempre. Apesar de fazer parte de uma obra de ficção, essa despedida forçada reproduz com extrema precisão e fidelidade o que aconteceu na vida de milhões de pessoas em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

Na realidade, Pindorama tem servido de refúgio e porto seguro para grandes levas de portugueses, italianos, japoneses, libaneses, sírios, alemães, poloneses, armênios, chineses, espanhóis, coreanos, além de outras nacionalidades. Mais recentemente, habitantes de alguns países latinos, como Venezuela, Bolívia, Haiti e outros tem se dirigido ao Brasil, especialmente à cidade de São Paulo, em busca de segurança e oportunidade de trabalho.

Uma outra corrente migratória, em sentido oposto, ou seja, de saída do Brasil para outros países, começou a ocorrer nas últimas décadas, e nesse grupo posso incluir meu próprio núcleo familiar. No nosso caso, teve início com minhas filhas, que vieram na frente e acabaram me atraindo, à semelhança de um fenômeno magnético.

Com a pandemia as viagens internacionais entre determinados países ficaram suspensas, até que o desenvolvimento e aplicação das diferentes vacinas aconteçam. Infelizmente, o Brasil, que julgávamos “Abençoado por Deus e Bonito por Natureza”, nos versos de Jorge Benjor, deu uma baita vacilada. Não encomendou as vacinas quando oferecidas aos governantes e, por inspiração de negacionistas, promoveu – e continua promovendo – aglomerações e festas clandestinas de toda ordem. O castigo não se fez esperar e hoje Pindorama é líder, não no futebol ou Carnaval, mas em número de infectados, hospitalizados e mortos. Um triste exemplo para as atuais e, para quem sobreviver, futuras gerações.

Mas não é esse o tema que pretendo abordar neste texto, mas um outro, ainda mais horripilante e quase inacreditável, pois atenta para os mais elementares princípios dos seres humanos, inclusive o decantado instinto materno. Posso estar equivocado, mas acredito que, passado o perigo do coronavírus, o que vai acabar acontecendo, cedo ou tarde, é que muitos pais e mães de família responsáveis irão se questionar se é esse o país em que tencionam continuar vivendo e criar seus filhos.

Para quem não vem acompanhando a mais recente tragédia, vamos recapitular alguns pontos escabrosos dessa história, que nem o mais inspirado ficcionista poderia sequer imaginar. A história tem início em Bangu, ponto final da linha férrea da Central do Brasil e termina na Barra da Tijuca, point de muitos deslumbrados e novos ricos emergentes.

Lá em Bangu, bairro que deve seu nome a uma importante indústria têxtil que funcionou no tempo em que o Brasil produzia tecidos, instalou-se um núcleo das chamadas milícias. É uma organização constituída por policiais e ex-policiais pouco honestos que vive da extorsão dos infelizes moradores e arrecada taxas cobrando por serviços surrupiados de terceiros, como sinal de televisão e Internet, além de cobrar por “proteção”, no melhor estilo da Máfia. Isso não é novidade e as autoridades não conseguem atuar, pois já estão de tal maneira infiltradas que o problema se tornou praticamente insolúvel.

Além das milícias, muitas áreas do Rio estão sob controle de traficantes de drogas. Ou seja, sobra muito pouco espaço, naquela que já foi chamada de Maravilhosa, para se viver sem risco de ser assaltado ou atingido por uma bala perdida. Tanto que já estão na cadeia ou monitorados por tornozeleiras eletrônicas o atual, o anterior e o antecessor do atual governador daquele estado.

Nas últimas vezes em que me aventurei a ir ao Rio era preciso agendar um carro particular com antecedência para me apanhar no aeroporto, munido de GPS e de mais dois aplicativos. Um deles, o Waze, para alertar a respeito de congestionamentos no trânsito e um terceiro denominado aplicativo tiroteio, que informa aos motoristas as áreas da cidade onde estão ocorrendo assaltos e troca de tiros.

Em uma das minhas idas da Barra a Ipanema, perguntei ao motorista, por curiosidade, quantos episódios bélicos do gênero estavam ocorrendo naquele exato momento e a resposta me surpreendeu: trinta e cinco! Por essa razão fico espantado quando amigos meus que teriam condições de se mudar para um lugar ou país mais tranquilo continuam residindo no Rio, na esperança de que o problema seja passageiro e vá melhorar.

Mas ainda não foi esse o que me inspirou a escrever este texto, mas sim algo ainda mais preocupante. Há poucos dias foi assassinado no Rio, pelo próprio padrasto, um menininho de apenas quatro anos. O criminoso é – ou afirma ser – médico, apesar de nunca ter exercido a profissão e se dedicar à política, atividade bem mais rentável. Para angariar votos em Bangu e se eleger vereador na Câmara Municipal do Rio conta com o apoio do chefe local da milícia, não por acaso, seu pai e policial militar reformado. O mais grotesco e chocante é que a mãe dessa criança, que estava casada com o facínora, além de não proteger a vida do próprio filho, fez questão de vestir suas roupas mais elegantes e fazer pose com a boca em biquinho, para sair bem nas matérias jornalísticas. Mãe e padrasto já foram presos, mas não se sabe por quanto tempo ficarão detidos, pois a aplicação das leis, no Brasil, obedece à máxima de que “A Justiça é Cega”. E bota cegueira nisso. O criminoso, por incrível que possa parecer, faz parte do Conselho de Ética da Câmara de Vereadores do Rio.

Se alguém ainda tinha esperanças de que as coisas iriam melhorar em Pindorama, aconselho abrir bem os olhos, tirar o cavalinho da chuva, emitir um passaporte e conseguir um visto para um país sério. Mas tem de fazer isso ASAP – as soon as possible – enquanto é tempo, antes do inevitável estouro da boiada. Para quem não tem condições, que permaneça em casa a maior parte do tempo e mande instalar portas e janelas de segurança, pois os tempos estão bicudos e não dão sinais de que irão melhorar.

Foto: Agência Brasil -ABrCC BY 3.0 BR, via Wikimedia Commons

2 thoughts on “Olho vivo

  • Feliciano Mesquita

    Realmente, a situação agora para se viver no Rio de Janeiro não está das mais confortáveis! A hipocrisia das autoridades e a corrupção generalizada em todos os níveis, inclusive a nivel pessoal de muita gente, chega a assustar. Apesar disso, o que mais me preocupa é miserabilidade da população que está aumentando dia a dia. Nunca vi tantos mendigos nas ruas! E não adianta mudar de calçada porque do outro lado está igual ou pior. Chamar a polícia ou a prefeitura não faz nenhum sentido porque onde colocar tanta gente? Então decidi fazer a minha parte como “formiguinha”. Eu e as minhas filhas estamos doando “quentinhas” (ou marmitas, como fala o paulista) para algumas pessoas. Não é difícil porque basta cozinhar um pouco mais e transformar o excesso em quentinhas. Eu ditribuo no Largo do Machado, a filha Joyce distribui na Lagoa e a filha Tatiana em Campinas, onde mora.
    A situção é muito preocupante porque, ao menos no Largo do Machado, a população de rua só faz aumentar. É o cenário ideal para aparecer um “salvador ds pátria”para entornar o caldo!

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  • Nelson Menda

    É incrível, Feliciano, como o país em que sonhamos viver e criar raízes se transformou em um lugar irreconhecível. Eu também procuro fazer a minha parte, orientando e auxiliando pecuniariamente pessoas que dependem de mim. O mais sério, porém, é não vislumbrar um horizonte. Eu já emigrei – e não pretendo retornar – mas é triste ver o Brasil nessa situação. Parabéns pelo trabalho comunitário que vc. e sua família estão realizando.

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