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Mamãe, você está bem?

Por Marion Minerbo

Julinha (dois anos e meio) está brincando de Lego com a avó. A mãe está trabalhando em outro quarto. Julinha faz uma história em que a filha tranca a mãe em uma torre, e ela fica presa lá sem conseguir sair. A mãe grita por socorro, e a filha diz, brava: “você está aí sozinha e ninguém vai te ajudar”.

De repente, Julinha sai correndo do quarto no meio da brincadeira e vai até o da mãe:

– Mamãe, tá tudo bem, mamãe?

– Sim, filha, está tudo bem. E com você, está tudo bem?

-Está, sim!

E sai e volta a brincar.

 

Julinha:

Brincar é uma atividade muito importante para meu desenvolvimento emocional. Não é só lazer e diversão: é uma necessidade! Se algum dia eu parar de brincar, pode se preocupar: algo bem grave está acontecendo comigo.

Quando brinco, crio situações que têm a ver com tudo o que vivi, mas não consegui processar emocionalmente. É como se eu estivesse contando para mim mesma o que foi que me marcou. Conforme vou dando voz aos personagens, e me ouvindo conversar com eles, vou digerindo as impressões, mais ou menos vagas, do que me aconteceu. E, com isso, meu Repertório Emocional vai crescendo, e me ajudando a enfrentar a vida. Que, aliás, não é nada fácil para uma criança!

Quando invento histórias, sinto que as coisas que imagino existem mesmo. Ao mesmo tempo, sei que estou só brincando, e que sou eu que estou criando aquela situação. É confuso, porque é de verdade, mas ao mesmo tempo não é. E tem que ser assim! Se a brincadeira não for nem um pouquinho de verdade, não tem graça porque eu não mergulho na história; e se eu não mergulhar na história, não vai servir para ampliar Meu Repertório. Mas se for de verdade demais, eu fico com medo de inventar, de imaginar e de desejar certas coisas, e posso até travar. Em geral, meu medo não é tão grande.

Mas, um dia, eu precisava brincar de Lego. Estava com uma sensação ruim em relação a mamãe. Alguma coisa estava me incomodando, mas eu não sabia o que era. Esse incômodo me fez inventar uma história. Eu colocava a mamãe de castigo dentro de uma torre. Fazia ela me pedir socorro. E eu mesma respondia que não ia ajudar, que ela tinha que ficar lá sozinha. Claro que ela ficava desesperada!

Você deve estar se perguntando por que inventei justamente esta história, e não outra. É porque eu precisava me tratar do sofrimento causado por certas sensações pesadas e escuras que eu carregava dentro de mim. Eu precisava colocar dentro da mamãe as coisas ruins que sinto, para ver se ela me ajudava a entender o que era. Então, na brincadeira, eu fazia mamãe sofrer. Mas não exatamente pelo prazer sádico de ver ela sofrer. Era para que, sofrendo, ela pudesse me contar que sofrimento era aquele. Isso me ajudaria a reconhecer o meu próprio sofrimento.

Vou te explicar melhor que sensações eu coloquei dentro dela. É difícil ser pequena porque dependo dos grandes que, na minha cabeça, podem tudo. Preciso dar um jeito de entender essa diferença com os poucos recursos mentais de que disponho. Para mim, a coisa é simples: já que eles podem tudo, deveriam resolver tudo para mim. Se não fazem isso, é porque não querem. Dá raiva, ou não dá raiva? Por isso, na brincadeira, eu podia salvar mamãe, mas não queria. Era essa sensação horrível que eu colocava dentro dela.

Eu invento teorias para dar algum sentido à enorme – e injusta! – diferença de poder entre adultos e crianças, e depois sofro porque acredito nelas. Um exemplo: “é muito bom ser adulto para poder mandar nas crianças”. Quando crescer, talvez eu consiga ver que não é bem assim. Seja como for, já não é fácil depender de alguém; mas, quando eu entendo desse jeito, fica insuportável. Vira uma sensação pesada e escura que fica entalada na boca do meu pequeno estômago.

Resumindo, a dependência fere minha dignidade e me aterroriza; já a submissão me dá raiva. Mamãe não percebe, nem teria como perceber (porque são invisíveis a olho nu), esses meus pequenos dramas cotidianos. Brincar é um santo remédio porque me ajuda a digerir uma parte deles, ampliando, assim, meu Repertório Emocional.

Na minha história, eu fazia mamãe gritar por socorro. Enquanto ela gritava, humilhada e aterrorizada, eu sabia que ela estava sentindo a mesma coisa escura e pesada que eu. Dava para ver que ela achava que ia ficar lá sozinha para sempre. Como não estava acontecendo comigo, eu conseguia perceber o terror e o desamparo dela – mas isso, de alguma forma, me contava do meu próprio terror e do meu próprio desamparo.

Eu estava muito feliz. Tinha conseguido fazer ela ser um espelho daquilo que ainda desconhecia de mim mesma. Só que era um espelho invertido: ela era eu, e eu era ela! Até aqui, eu estava usando a brincadeira para “me tratar”.

Mas aí eu me empolguei. Descobri que ser forte e ter poder dá barato. E comecei a ter prazer em fazer ela sofrer. Quando pegava mamãe e trancava na torre, eu era a poderosa; e podia fazer com ela o que quisesse! Era muito gostoso poder ter voz ativa, em vez de ser passiva. Que delícia, poder mandar, e ver ela obedecer!

Acho que foi nesse ponto que aconteceu uma coisa que eu não esperava. De repente fiquei com medo que a mamãe de verdade, que estava trabalhando no outro quarto, estivesse muito desesperada, como a mamãe da brincadeira. Também fiquei com medo de que ela estivesse brava por eu estar gostando de fazer ela sofrer. Eu tinha colocado tanta verdade na brincadeira, que não sobrou nem um pedacinho de mim do lado de fora.

Por isso precisei ir lá conferir. “Mamãe, tá tudo bem?” Foi um alívio ver que sim, estava tudo bem. Ela estava trabalhando, e me recebeu com o carinho de sempre. Não sei se ficou, ou não, espantada que, “do nada”, eu tenha me preocupado com ela. Talvez sim, porque me perguntou se eu estava bem. Vi que ela também se tranquilizou.

Só queria dizer mais uma coisa. Eu estava brincando de Lego perto da vovó. Ela estava lá fazendo as coisas dela, mas eu me sentia sustentada por sua presença boa, gostosa, amorosa e não intrusiva. Se ela não estivesse lá, talvez a angústia de imaginar que eu estava sozinha no mundo não me permitisse brincar, nem ampliar meu Repertório Emocional. Tudo isso me ajudou a continuar brincando tranquila.

Foto: mskathrynne (Pixabay)

2 thoughts on “Mamãe, você está bem?

  • Pingback: Mamãe, você está bem? - Rede Israel

  • Mary Kirschbaum

    Parabéns Marion! Pelo texto tão bem escrito, onde vivenciamos juntamente com a Julinha, no seu brincar, como ela se utiliza de suas ferramentas emocionais para elaborar seus conflitos internos, na sua relaçao com a mãe e suas proprias vivências!

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